"O futebol é um jogo desportivo colectivo tão distinto de quase todos os que conhecemos que todos os dias somos impelidos a fazer no futebol o mesmo tipo de comparação de outras modalidades. Seja onde for, estamos sempre a ser empurrados para formas redutoras de analisar o jogo e para um empobrecimento da discussão de quem teve o maior mérito, depois do resultado final.
Das maiores e mais sofisticadas formas de analisar o jogo, aparece agora o número de ocasiões de golo criadas por cada equipa, e também eu caio na tentação de, na tentativa de simplificar a informação para quem a vai receber, tentar explicar um jogo dizendo que teve mais mérito a equipa que conseguiu criar mais situações de golo.
Outra vez os números, não é?! Haverá sempre por aí alguém a achar que eu não os suporto. Mas não é o caso.
É claro que o número de ocasiões criadas tem alguma relevância para traduzir aquilo que foi o jogo, para ajudar a perceber a tendência ofensiva e defensiva do mesmo (de cada equipa), para ajudar a entender como é que cada equipa se comportou face à postura do adversário. Mas discordo que essa quantificação possa traduzir por si só a justiça do resultado. O problema é óbvio: o critério que cada um utiliza para traduzir o que é uma ocasião de golo. Isto é, o pensamento por trás do número de situações criadas não contempla o tipo de situação de finalização em questão, e a forma como essa situação foi conseguida. Portanto, para uma melhor percepção da justiça do resultado, ao número de situações deveria seguir-se uma análise ao tipo de situação e da forma como a situação apareceu. Da quantidade para a qualidade, uma vez que é perfeitamente possível que uma equipa que crie cinco ocasiões de golo seja menos merecedora da vitória do que outra que crie uma. É aqui que entram as vitórias morais.
Normalmente, quando uma equipa perde um jogo e tem um grande volume ofensivo e/ou tem uma percentagem esmagadora de posse, diz-se que essa equipa foi ineficaz e que somou uma vitória moral, uma vez que não conseguiu transformar em resultado a superioridade no jogo. Para me demarcar da acusação de defensor de vitórias morais, coloco o problema do outro lado: é muito fácil explicar o jogo com números tendo em conta que o volume pode ser avassalador; mais difícil e mais completo será sempre explicá-lo olhando para a qualidade que existe dentro desse volume.
Ou seja, a equipa que foi mais atacante, que teve mais remates, mais cruzamentos, mais posse de bola,mais tempo no meio campo ofensivo do adversário, pode perfeitamente ser a equipa que menos merece sair vitoriosa porque pode não ter tido a arte e o engenho para conseguir criar situações de finalização “simples”. E sim!, as situações de finalização simples são melhores do que as outras por serem menos afectadas por factores externos e pela maior ou menor inspiração de quem finaliza. Portanto, não é de vitórias morais de que estou a falar, mas sim de quem fez mais por criar situações de finalização onde o número de constrangimentos na última acção é menor.
Logicamente que a equipa que tem a bola durante mais tempo, e que passa mais tempo no meio-campo adversário, tem mais possibilidades de conseguir criar situações que possam levar à vitória, mas não é em todas as situações que essas equipas conseguem, apesar de um maior número de tentativas, romper com a organização defensiva do adversário e criar situações que lhes permitam estar mais perto do sucesso do que aquelas criadas pelo adversário num menor número de tentativas.
O jogo entre o Tottenham e o Manchester City para a Liga dos Campeões é um grande exemplo disso: a equipa de Guardiola foi dominadora, teve mais bola, controlou, mas nunca esteve mais perto da vitória do que a turma de Pochettino.
São tantas as vezes em que olhamos para o jogo e dizemos que a equipa teve azar, que não foi eficaz e que pelo número de situações que teve perto da baliza mereceria outro resultado, mas quase nunca olhamos para o tipo de situações criadas e pensamos que as situações são de difícil execução e finalização, e que, afinal, o problema poderá não ser da eficácia e do volume das situações mas sim da qualidade das mesmas. Por exemplo: num jogo em que a equipa faz muitos remates e permite que o guarda-rede faça defesas espantosas, em que faz muitos cruzamentos e faz a bola chegar muitas vezes perto da baliza, assumimos pelo frisson que este tipo de situação causa e pelo caudal ofensivo que a equipa demonstra que será uma questão de tempo até a equipa conseguir marcar. No final, a frustração e o sentimento de injustiça são grandes por não termos ido ao detalhe para discernir o tipo de situações que foram criadas.
Para que fique mais claro o tipo de avaliação que deve ser feita das situações de golo, vou apresentar alguns lances retirados do Twitter da Eleven Sports.
.@LaLiga | @Atleti x @RCCelta— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 13 de abril de 2019
Mais um dia na vida de Oblak… Fantástico👏 #JogaLaLiga #ForTheFans pic.twitter.com/YuhSw6cS1u
Reparem, por exemplo, nestas duas defesas de Oblak. A primeira, brilhante, porque o remate desvia no defesa e ressalta a poucos centímetros dele. Mas se o remate não tem sido desviado pelo defesa, muito provavelmente teria sido um lance sem história pelo pouco ângulo que havia para finalizar, e pela forma como os defesas e o Oblak fecharam a baliza. Se tem sido golo, o mérito teria sido muito pouco.
A segunda defesa, pela espectacularidade, dá a impressão de ser um lance de grande dificuldade para Oblak. Todavia, a difícil execução do avançado, pelas condições em que a bola chega a si, fazem com que não tenha tempo e espaço (caso queira rematar) para escolher onde colocar a bola, nem tão pouco para executar o remate nas melhores condições. A bola vai ao meio, e é uma defesa que apesar de causar calafrios tem um grau de dificuldade bem inferior à primeira.
.@Bundesliga_EN | @BVB x @1FSVMainz05— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 13 de abril de 2019
Milagre de Bürki!! Que muro🤚 #Bundesboom #ForTheFans pic.twitter.com/j5WO7mIPnF
Esta situação, na qual Burki aparece em grande plano, é bastante boa para ilustrar que, apesar dos arrepios e da proximidade da baliza, não houve grande mérito ofensivo na forma como a situação apareceu, e a própria situação tem um índice qualitativo baixo. Isto porque os constrangimentos para a finalização eram imensos:
- A quantidade e a ação dos defesas colocados para defender o lance que dificultam todos os gestos técnicos;
- A trajectória e a velocidade da bola após o primeiro cabeceamento;
- A forma como em desequilíbrio Antonhy Ujah tenta finalizar com o pé, seguido da forma como em queda ainda tenta rematar no final do lance.
Milagre seria desta situação, tendo em conta a dificuldade, ter saído um golo.
.@LaLiga | @Atleti 1-0 @RCCelta | 42’@Atleti na frente! Que livraço de Griezmann👌 #JogaLaLiga #ForTheFans pic.twitter.com/n5D8HsxJo4— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 13 de abril de 2019
As bolas paradas costumam ser decisivas em alguns jogos, e a brilhante execução de Griezmann dá a entender, pela aparente facilidade do gesto, que é um momento privilegiado para se conseguir chegar ao golo. Mas apesar de ser uma situação com algum potencial, não é de fácil execução e está longe de ser o melhor tipo de situação que se pode encontrar para finalizar.
Para lá da dificuldade do livre pela distância ou pelo ângulo, há ainda que perceber de onde é que o lance surgiu: foi uma falta conseguida de uma ação colectiva ou individual, ou foi um lance fortuito mal abordado pelo defensor?
.@LaLiga | @SevillaFC 3-1 @RealBetis | 64’— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 13 de abril de 2019
GOLAÇO!! Franco Vázquez do meio da rua! Está ao rubro🔥 #JogaLaLiga #ForTheFans pic.twitter.com/7EqbY6ypuv
Franco Vázquez faz um golo de encher o olho, mas esta é uma situação que apesar de finalizada com categoria não garante uma percentagem de acerto tão grande como outras. Porque a qualidade individual do executante é preponderante, há ainda alguma distância para a baliza, está em jogo um defesa que pode colocar-se no caminho da bola, e o guarda-redes está dentro do lance.
.@LaLiga | @SevillaFC 1-0 @RealBetis | 26’— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 13 de abril de 2019
Munir El-Haddadi! Está aberto o marcador no derby da Andaluzia! #JogaLaLiga #ForTheFans pic.twitter.com/6PQRWd5I8C
Normalmente, as situações de cruzamento são avaliadas tendo em conta o jogador que consegue cabecear a bola: se for o defesa é como se a situação não tivesse existido, se for o avançado e a bola passar perto da baliza é mais uma a somar para o conjunto de situações de golo. Não se tem em conta se a equipa que defende tem superioridade numérica e espacial no momento de cruzamento, não se tem em conta se o avançado que cabeceia o faz nas melhores condições (com ou sem oposição), ou se o cruzamento apanha a defesa de frente ou se a bola é colocada nas costas.
Neste caso, no golo de Munir El-Haddadi, a bola é colocada por forma a dificultar ao máximo a acção dos defesas, ficando quem ataca numa posição favorável para finalizar.
.@ChampionsLeague | @AFCAjax 0-1 @JuventusFC | 45'— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 10 de abril de 2019
Um golo 100% português! Cancelo cruza para a cabeça de Cristiano "Super-Homem" Ronaldo! #ChampionsEleven #ForTheFans pic.twitter.com/BZk21bZMrJ
Sobre o golo de Cristiano, as declarações de Frenkie de Jong são bastante elucidativas: “Quando o vi no ar, em posição frontal, sabia que íamos sofrer”. A descrição é perfeita para se perceber a qualidade da situação criada; e ainda que seja de cabeça, a probabilidade de êxito é grande. Não superior a uma situação do mesmo tipo para finalizar com os pés, e não é a situação de finalização mais simples de executar, mas é sem margem para dúvida uma situação de finalização muito boa.
.@LaLiga | @SevillaFC x @RealBetis— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 13 de abril de 2019
Bonita jogada de Ben Yedder, mas Pau López tirou-lhe o pão da boca! #JogaLaLiga #ForTheFans pic.twitter.com/JjKYQvZDbC
Não podemos colocar no mesmo saco esta situação que, apesar de ter muita qualidade, é uma situação na qual Ben Yedder ainda tem o guarda-redes como obstáculo, e a situação que se segue, em que o único obstáculo para a finalização é a qualidade do último passe (bola pelo ar), e a execução do Sarabia.
.@LaLiga | @SevillaFC 2-1 @RealBetis | 59’— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 13 de abril de 2019
SARABIA!! A equipa da casa não perde tempo e com uma grande jogada, volta para a frente do marcador! #JogaLaLiga #ForTheFans pic.twitter.com/O4QvBJcPG1
O que a maior parte das pessoas tem dificuldade em perceber (ainda que possam sempre existir discussões sobre os critérios que avaliam a qualidade dos lances) não é o tipo de situação ou a qualidade das mesmas, mas sim de onde é que as situações aparecem. Porque uma equipa pode não ter mérito algum na forma como as situações de jogo se transformam em ocasiões de golo, ainda que possa ter o mérito na finalização das mesmas.
Porém, o ter finalizado as situações que aparecem por imponderáveis como a sorte, as condições meteorológicas, os erros de arbitragem ou os erros do adversário, em nada legitima o mérito no resultado final. Apesar da finalização, e do volume, as situações podem não ter sido criadas e terem aparecido por factores externos à equipa, factores esses que, por não terem nada a ver com a equipa, não podem servir como avaliadores daquilo que foi a produção de jogo, uma vez que qualquer outra equipa teria beneficiado das mesmas situações pelo simples facto de estar em campo.
.@ChampionsLeague | @LFC 2-0 @FCPorto | 26'— Eleven Sports Portugal (@ElevenSports_PT) 9 de abril de 2019
Golo! A jogada começa num passe fenomenal de Henderson e acaba nos pés de Firmino que só teve de encostar. #ChampionsEleven #ForTheFans pic.twitter.com/CefP8QHYHP
Por isso, não se tratam de vitórias morais, mas sim de uma avaliação qualitativa que tem em conta quem mais fez por procurar a vitória. E terá sempre mais mérito a equipa que tentar mais e conseguir melhor criar situações de finalização simples, como é o caso do golo de Firmino. Porque neste tipo de golo, que é criado pela acção ofensiva do Liverpool, a qualidade individual de quem finaliza é um factor que quase não tem importância."
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