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terça-feira, 3 de outubro de 2017

Como se o mar se lembrasse do nome dos seus afogados

"Os Benfica-Sporting ou Sporting-Benfica são sempre motivo infalível para uma crónica. Ou, então, falar de muitos deles. Tenho tantos e tantos na memória, que seria impossível recordá-los a todos. Mas relembro o ritmo do romance do dérbi.

Não tenhamos dúvidas. Eu, pelo menos, não tenho. O Benfica-Sporting ou Sporting-Benfica é, em Portugal, o jogo-de-todos-os-jogos.
Tantos e tantos Benfica-Sporting-Benfica tenho na minha memória, que recordá-los seria como se o mar soubesse de cor o nome de todos os seus afogados.
Mais de 100 anos de nomes e de números, de lugares e acontecimentos.
Mais de 100 anos de páginas de jornais plenas de paixão.
Mais de 100 anos de fintas que mereceriam sonetos. De defesas que mereceriam sonatas. De golos que mereceriam bibliotecas ou óperas inteiras.
'Houve uma vez...'
Haverá sempre 'Houve uma vez...'
Houve uma vez, em 14 de Julho de 1919, no Campo de Benfica, na finalíssima do Campeonato de Lisboa, que o Sporting entrou em campo apenas com dez jogadores, porque não tinha mais para disputar o encontro.
Diria alguém, com requintes de ironia: 'O Sporting estava em inferioridade numérica, mas o Benfica estava em inferioridade psicológica'.
Nada seria mais verdadeiro.
O Sporting venceu por 1-0, golo de Perdigão.
Venceu igualmente a segunda mão da finalíssima, por 2-1. E foi campeão de Lisboa.
Em ambos os jogos houve violência e luta corpo a corpo por entre o público.
E aí ninguém sabe onde acabou a inferioridade psicológica e começou a superioridade numérica.

Quando os benfiquistas faziam barulho a mais
Houve na véspera daquele Benfica-Sporting, nas Amoreiras, de 3 de Março de 1940, que Peyroteo conta no seu livro de memória. Manuel Marques gostava de irritar o treinador Szabo, que falava um português atrapalhado. E interrompia-lhe a prelecção, dizendo: 'Isto está tudo muito bem, mas o senhor não está a contar com os adeptos deles que fazem muito barulho e influem no resultado'.
Szabo zangava-se: 'Sinhor! Carágo! Dar uma cabêçada para si. Não brincar e não rir que não ter graça nênhum!'
E Manuel Marques insistia: 'Eles fazem muito barulho. A gente não vê a bola, não vê nada. Só houve gritar Benfica, Benfica, Benfica. É horrível!'
E Szabo, então, dava táctica definitiva: 'Passar bola bons condições e Fernando fazer calar tudos, gajos não piar mais...'
E Fernando Peyroteo faz calar todos. Com golos: um, dois e três. 'Caréga Maria!'
Houve aquele outro jogo de 17 de Outubro de 1965, no Estádio da Luz, com Lourenço, que viera de Académica e a quem, por piçarra, chamavam a 'Vaca', a fazer quatro golos, dois deles de chapéu a Melo.
'Não foi uma questão de o guarda-redes ser pequeno, foi uma questão de ter ângulo para marcar os golos assim', diria Lourenço, mais tarde, defendendo-se da troça dos que diziam que tinha marcado quatro golos a um guarda-redes anão. E Melo sofrendo o 'síndroma de Persónio' e nunca mais jogando outro derby.
O imarcescível Nelson Rodrigues costumava escrever: 'Tudo é Fla-Flu e o resto é paisagem'.
Pois era mesmo isso que me apetecia escrever.
Mais de 100 anos de nomes. A dimensão dos grandes nomes.
As imensas madrugadas das vitórias as longas noites das derrotas.
'Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...'
Poemas de noventa minutos.
Domingos transformados em catástrofes.
Alfama e Madragoa; a ponte e o Cristo-Rei; e leão do Marquês.
O Chiado e o Rossio. A Estrela e Campolide.
As noites inquietas do Bairro Alto.
As ruínas do Carmo e o sino da Igreja da Trindade.
Da Travessa do Guarda-Jóias ao elevador da Bica.
Da Penha de França à Pampulha.
Do Largo do Conde Barão à Rua do Sol ao Rato.
Tudo isso é também Benfica e Sporting.
Equipas inteiras lidas ao ritmo dos poemas.
Azevedo, Cardoso e Marques; Barrosa, Canário e Veríssimo; Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travaços e Albano.
Costa Pereira, Mário João e Ângelo; Cavém, Germano e Cruz; José Augusto, Eusébio, Torres, Coluna e Simões.
Carvalho, Pedro Gomes e Hilário; Fernando Mendes, Alexandre Baptista e José Carlos; Figueiredo, Osvaldo Silva, Mascarenas, Geo e Morais.
José Henrique; Artur, Humberto Coelho, Messias e Adolfo; Toni e Jaime Graça; Eusébio, Artur Jorge, Nené e Jordão.
'Tirem-me daqui a metafísica!'
Fados canalhas; homens bêbados; montras de leituras; lençóis dependurados nas janelas.
O rio ao fundo.
'Macio Tejo, ancestral e mudo'.
O transistor pousado sobre o balcão de mármore da taberna: 'Goooolooooooo!'
O grito fugindo ao longo das ruelas estreitas.
Fitas coloridas de plástico nas portas dos talhos.
Miúdos dependurados nas boleias dos eléctricos.
Prazeres e Gomes Freire.
'Houve uma vez': poderia continuar assim e nunca mais acabar.
O romance dos Benfica-Sporting é um poema interminável.
Com Lisboa e Tejo e tudo.
Não me digam que já não têm saudades de um Benfica-Sporting, porque eu não acredito..."

Afonso de Melo, in O Benfica

2 comentários:

  1. Costa Pereira, Mário João e Ângelo; Cavém, Germano e Cruz; José Augusto, Eusébio, JOSÉ ÁGUAS, Coluna e Simões.

    JOSÉ ÁGUAS, OK?

    Imperdoável, Afonso de Melo!

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  2. Estes nao paravam de lutar. Vamos ter de lutar o dobro com este caminho armadilhado a azul e verde

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