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quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Desafios no (futebol) feminino

" «You always have to be at the top of your game and your always improving because of the people around you. I train the way I do every day because in the end, I love what I do.»
Shannon Boxx (campeã olímpica 2004, 2008, 2012, entre outras provas, e finalista do prémio "Melhor Jogadora do Mundo", da FIFA, em 2005).
No mês em que se iniciaram os trabalhos de preparação para o Campeonato da Europa na Holanda, para o qual a nossa selecção feminina sénior fez um apuramento histórico no final de 2016, parece de alguma forma apropriado abordar este tema da perspectiva sócio-psicológica.
Durante muitos anos (quase 15), tive o oportunidade de colaborar com uma série de Associações de Futebol, no âmbito dos cursos de formação de treinadores. Foi, efectivamente, uma oportunidade única onde, tendo a oportunidade de ser responsável do módulo de "Ciências do Comportamento", acabei por dar a conhecer esta área de conhecimento científico (e do seu contributo para a modalidade) a uma imensidão de "candidatos" a treinadores - alguns deles vieram efectivamente a assumir um claríssimo papel de destaque na profissão.
Curiosamente, ao longo de tantos anos, a percentagem de treinadores dedicados ao futebol feminino era diminuta (1%?) e, muito frequentemente, e num ambiente de franca camaradagem e sem malícia, eram trocadas piadas acerca dos colegas que se dedicavam a treinar mulheres.
Contudo, sem excepção, e inversamente ao que pude constatar em muitos treinadores do masculino, quase sempre observei elevadíssimos níveis de motivação e de compromisso com a modalidade.
Na realidade, treinadores que treinam "o feminino" (e aqui poderíamos integrar todas as outras modalidades) são, muito frequentemente, motivados intrinsecamente ou, por outras palavras, extraordinariamente focados no processo e, daí, fazerem o "match" perfeito com as características das populações que treinam.
Curiosamente, existe uma correlação positiva entre este estilo o o nível de confiança pessoal do treinador (ou seja, acreditando no processo que foi por si delineado, tende a mantê-lo mesmo face à adversidade, até que resulte). Igualmente curioso, alguns dos treinadores de excepção do masculino, partilham deste mesmo estilo. De uma forma bastante generalista, poderíamos dizer que, em treinadores focados no resultado, todas as suas decisões e estratégia estão, em primeira instância, focadas na vitória imediata, enquanto que um treinador focado no processo orienta as suas acções para o plano que delineou, com o propósito de expandir as competências da sua equipa. 
Grosseiramente, poderíamos dizer que uns estão focados no sucesso a curto-prazo e outros, a médio-longo prazo - naturalmente que, este estilo de orientação, será ou não a mais oportuna, de acordo com a conjectura onde tudo isto será actuado.
A expressão de Shannon Boxx espelha-nos isto mesmo: um enorme foco na superação (a cada minuto) das suas competências, pelo prazer que retira daí - ou seja, prazer associado à aprendizagem e não ao resultado obtido. Revela também uma enormíssima confiança na equipa que a gere e este tipo de fenómeno é bastante comum, na medida em que, se acredito no processo, acredito na minha equipa técnica.
Os estudos de género (diferenças entre o atleta masculino e feminino) foram fortemente impulsionados na década de 70 e, nesse enquadramento sócio-conjectural, foram observadas diferenças entre os dois géneros que, durante muitos anos, foram citadas como os denominadores que distinguiriam homens e mulheres.
Contudo, e como o contexto social é, também ele, extraordinariamente dinâmico e permeável a novas tendências pedagógicas, seja no contexto académico, desportivo ou até familiar, estas mesmas diferenças tenderam a esbater-se um pouco, não se podendo afirmar tão peremptoriamente como isso. 
Falemos, então, apenas de tendências (algumas elas, até partilháveis com atletas de outras "minorias", em contexto de alta competição, como sejam os paraolimpicos).
Tendencialmente, diz-se, as mulheres são menos competitivas e mais focadas na tarefa ou, por outras palavras, mais orientadas para o treino e menos orientadas para a competição.
Dependendo da perspectiva, esta pode ser uma enorme vantagem competitiva que um treinador poderá explorar na medida em que, a performance competitiva, num plano óptimo, deverá espelhar a qualidade dos treinos e, por esta razão, se se forem integrando mais momentos "competitivos", em treino, estaremos também a desenvolver as suas competências de jogo.
Tendencialmente, diz-se, são mais trabalhadoras e esforçadas (sendo que, da minha experiência, pode-se incluir aqui todo e qualquer atleta, independentemente do género, que desenvolva a sua actividade em alta competição e que exiba performances consolidadamente de sucesso - nem sempre acontece).
Aqui, costumo brincar com algumas atletas... é a "vantagem" das mulheres serem, culturalmente, mais propensas ao "fenómeno da culpa" (entenda-se em "psicologês": locus de controlo interno)... traduzindo, "se correu mal, a culpa é minha... logo, tenho que trabalhar a dobrar".
Em traços genéricos, é mais fácil comprometermos um atleta, com este tipo de locus de controlo - com exercícios de correcção e superação, porque desvalorizam completamente a "frustração" momentânea (a curto prazo e resultante muitas vezes da repetição dos exercícios) e se focam no ganho de competência - do que um atleta que, com o locus de controlo externo, justifica os seus erros com os colegas, o treinador ou a arbitragem (tudo, convenientemente, fora da sua "zona de responsabilidade").
Por último, e talvez o mais claramente associado à prática de futebol no feminino (fenómenos que, por certo, assistiremos, por exemplo, num rapaz que queira seguir dança clássica), uma gigantesca determinação e capacidade de resistência à frustração, resultante de uma prática que, até há bem poucos anos, era mal aceite em termos sociais, pelos estereótipos que foram criados.
Julgo que, em alguns contextos, será certamente uma "obstinação saudável" em provar ao "mundo" que, através da sua escolha, será bem sucedida - o que não a protege, sem dúvida, de desenvolver grande parte da sua actividade num "contexto hostil" (hostil porque não valoriza e não apoia a sua escolha, chegando mesmo a descredebilizá-la).
É certo que as mulheres que irão defender o nosso país no próximo campeonato da Europa beneficiaram já de um forte apoio da Federação Portuguesa de Futebol, dos clubes e treinadores que agarraram este desafio de levar o Futebol Feminino "to the next level" (coisa que, há uns anos, seria impensável)...
Todavia, isto só foi possível porque há 10, 15 ou 20 anos... um conjunto de meninas, contra tudo e contra todos, seguiu a sua escolha. Uma escolha que as transformaria nas atletas que todas estas estruturas (e pessoas) decidiram apoiar.
E, por isto, e só por isto... independentemente de qualquer resultado, merecem sem dúvida, o nosso apoio. Melhor, o nosso agradecimento por nos mostrarem que, com trabalho e dedicação, o nosso sonho ou objectivo fica mais próximo."

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