"Guilherme, o negro Guilherme, levantou-se como um fantasma assustador e sôfrego por entre os gansos. O Benfica vencia o Casa Pia por 13-1 e ele marcava golos e golos: nada menos de nove!
A época de 1937/38 teve, para o Benfica, os seus altos e baixos, tal como os alcatruzes da nora da vida. Campeão Nacional, com os mesmos pontos que o FC Porto, perdeu o Campeonato de Lisboa para o Sporting, tal como o Campeonato de Portugal - derrota na final frente aos leões do Lumiar.
Mas fiquemo-nos pelo Campeonato de Lisboa. Prova iniciada em 1906 duraria até 1947, ininterruptamente e cheia de confrontos formidáveis entre os principais clubes da velha capital do império.
Vamos ater-nos à prova da época acima sublinhada. Disputada por Benfica, Sporting, Belenenses, Carcavelinhos, União de Lisboa e Casa Pia.
Pois bem: já desvendámos o nome do campeão, escrito a letras verdes.
Quanto aos 'encarnados', tinham nomes de brilho intenso: Albino - Francisco Alves Albino, magro, fino, resistente como um vime -; o duro e intratável Gaspar Pinto; o grande guarda-redes Augusto Amaro; Alfredo Valadas - o pontapeador emérito; o terrível Rogério Sousa e Guilherme Espírito Santo... Era aqui que queria chegar.
Guilherme Espírito Santo cometeu nesse campeonato de Lisboa uma proeza digna de ficar aqui neste registo semanal de histórias com as quais esgoto a paciência dos mais serenos leitores.
Dia? 5 de Dezembro de 1937.
Estávamos na 8.ª jornada. As coisas não corriam por aí além.
O início fora voluptuoso: oito golos marcados no Campo de Santo Amaro ao União de Lisboa - 8-0. Espírito Santo assinara três deles; Rogério outros tantos.
As vitórias prolongaram-se: 2-1 ao Carcavelinhos na 2.ª jornada (dois golos de Valadas); 4-1 ao Casa Pia, na 3.ª jornada (mais três golos de Espírito Santo); 3-2 nas Salésias, ao Belenenses, na 4.ª jornada (dois golos de Espírito Santo; derrota frente ao Sporting (0-1), na 5.ª jornada; e nova vitória na 6.ª jornada, a primeira da segunda volta, perante o União de Lisboa (5-4), num jogo em que o Benfica recuperou de um surpreendente 0-4 aos 50 minutos da contenda.
Perder com o rival de Alvalade deixava as ´águias' na corda bamba. Havia que ganhar, ganhar e ganhar até que chegasse o momento da desforra, agendado para a última jornada.
Não foi o que aconteceu. No Estádio da Tapadinha, o Carcavelinhos, que ainda não era Atlético, impôs-nos um empate frustrante: 0-0.
Era agora necessário esperar por um tropeção do adversário mais directo.
O jogo seguinte do Benfica era frente ao Casa Pia, no Campo das Amoreiras.
Ficaria registado na lenda negra de Espírito Santo.
Pés em fogo do negro insaciável
Do lado casapiano alimentava-se esperanças fundadas no nulo da Tapadinha, apenas cinco dias antes.
E a primeira meia-hora do desafio fez com que essas esperanças se consolidassem na firmeza com que os gansos se defendiam das bicadas de um 'águia' pouco enérgica.
Logo aos seis minutos, António Wiza bate Augusto Amaro e causa surpresa.
O Benfica está perro de movimentos no seu ataque. Demora a impor um ritmo forte e, até fazê-lo, conta com a oposição do guarda-redes Armando Jorge.
Xavier e Valadas, ausentes, são saudosamente recordados por um público recalcitrante. Navalhas é um ponta-direita intermitente.
Mas ergue-se a sombra negra de Guilherme Espírito Santo. Poucos como ele até hoje tiveram tão leve agilidade. Pairava sobre a grande área do adversário, ameaçando primeiro, cumprindo em seguida a promessa inquebrável do golo.
Aos 38 minutos faz o empate. Um minuto depois, coloca o Benfica em vantagem.
O intervalo regista a diferença curta, inquietante.
Ninguém poderia sequer adivinhar o que estaria para vir.
A galhardia dos gansos duraria pouco.
Os golos jorraram como champanhe numa taça do mais límpido cristal.
Espírito Santo faz 3-1; Rogério Sousa 4-1.
A velocidade do avançado do Benfica é caprichosa e assassina. As movimentações atacantes são opressivas e desfazem por completo uma defesa suave como algodão-doce.
Espírito Santo aumenta para 5-1, para 6-1 e para 7-1.
Até onde irá a sua ansiedade? Que fim terá essa voracidade de golos que o enlouquece, dançando sobre opositores derrotados, os pés em fogo disparando mortíferos remates quase todos imparáveis?
Agora sim, os espectadores das Amoreiras estão contentes. Ainda não sabem que o Campeonato de Lisboa lhe fugirá e que, daí a quinze dias, o Benfica não conseguirá mais do que um empate (2-2) frente ao Sporting. Vivem o momento e a alegria dos golos que não cessam.
Por breves momentos, Espírito Santo parece saciado.
Baptista faz o 8-1 e Eduardo Oliveira o 9-1 e o 10-1.
Números redondos. O jogo caminha para o seu final. Completamente arrasados, os homens do Casa Pia já nem saem do seu próprio meio-campo, agarrados aos destroços de uma fortaleza em ruínas desde o minuto 37.
Mas Guilherme, o negro Guilherme, ergue-se ainda como aqueles príncipes etíopes de rancho que povoavam as prosas de Nelson Rodrigues. Volta à carga, sanguinário e sôfrego.
Marca mais um: 11-1. E outro: 12-1. E outro ainda: 13-1.
É o relógio que o manda finalizar o massacre. O fim chega. Não há tempo para mais pontapés certeiros e devastadores.
Espírito Santo é para os gansos mais que um espírito: é um fantasma. Assustador. E eles não passam de almas penadas para os quais os três apitos finais são o som aconchegante de um alívio."
Afonso de Melo, in O Benfica
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