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quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Pal Csernai

"UM TREINADOR... INESQUECÍVEL!
Pal Csernei, apesar de ter 'apenas' vencido a Taça de Portugal de 1985, deixou forte marca no Benfica. Possuía o condão de não deixar ninguém indiferente. Para o bem e para o mal.

PAL CSERNAI morreu, aos 80 anos, no princípio desta semana. Deixou uma marca especial no futebol português...
Não foi fácil, para o Benfica, a época de 1984/85. O clube vinha de duas temporadas quase perfeitas com Sven-Goran Eriksson (dois Campeonatos, uma Taça, uma Taça Ibérica, final da Taça UEFA e quartos-de-final da Taça dos Campeões) e logo que o treinador sueco decidiu fazer marcha atrás na renovação de contrato com que se tinha comprometido com Fernando Martins e aceitou a oferta milionária da Roma, ficou escrito que o processo de sucessão seria complicado.
Toni, então adjunto de Eriksson, seria a escolha lógica, que garantiria a continuidade do trabalho. Fernando Martins, contudo, entendeu que era demasiado cedo para que Toni assumisse o comando da nau e partiu em busca de um técnico «disciplinador e estrangeiro». A escolha do recentemente falecido líder encarnado recaiu em Tomislav Ivic, que brilhara na Croácia ao serviço do Hajduk de Split, de onde se mudara, com enorme sucesso, para Anderlecht e Ajax. Foi contudo curto o reinado de Ivic na Luz. Após menos de um mês de pré-época, alegadamente por causa de uma divergência de divisas, Benfica e Tomislav Ivic separam-se. A duas semanas do início do Campeonato, a possibilidade de Toni ficar como treinador principal voltou a colocar-se. Mas Fernando Martins manteve-se fiel ao perfil que tinha traçado e preferiu um «disciplinador estrangeiro». Foi assim que surgiu na Luz o húngaro Pal Csernai, 52 anos.

O HÚNGARO 'ALEMÃO'
PAL CSERNAI jogou no Csepel SC de Budapeste e em 1955 foi duas vezes internacional pela Hungria, à altura provavelmente a melhor selecção do Mundo. Em 1956, na sequência da invasão soviética da Hungria, Csernai fez parte do contingente de desportistas que conseguiu escapar para a Alemanha Ocidental, onde passou a viver. Na RFA jogou no Kalsruher e no Stuttgarter Kickers, fazendo ainda uma época no campeão suíço La Chaux de Fonds. Em 1965 arrumou as botas e a partir de 1968 iniciou a carreira de treinador, no Wacker 04 de Berlin. Entre 1978 e 1983 Pal Csernai treinou o Bayern de Munique, onde foi várias vezes campeão. Ainda hoje, na Alemanha, é recordada a marcação mista das suas equipas, baptizada como «Sistema Pal».
Antes de rumar à Luz, Csernai ainda teve uma passagem pelo PAOK de Salónica, Grécia.
Em Portugal venceu a Taça de Portugal (3-1 ao FC Porto de Artur Jorge) e nos anos seguintes o futebol levou-o ao Borussia Dortmund, Eintracht de Frankfurt, Hertha de Berlin, Fenerbaçe e Young Boys. Em 1993/94 aventurou-se e foi seleccionador da Coreia do Norte, à altura governada por Kim Il Sung. Terminou a carreia de treinador num clube húngaro, o Matav Sopron.

RETALHOS DA VIDA DE CSERNAI NO BENFICA
Há episódios que ilustram bem a complexidade da personalidade de Csernai. Difícil no trato por vezes desconcertante, irrepetível...

ÁGUIA DE BRONZE
DEZ de Junho de 1985. Terminada a final da Taça de Portugal (Benfica, 3 - FC Porto, 1) e cumprido o ritual da volta de honra ao relvado do Estádio Nacional, a festa encarnada prosseguiu na cabina onde o presidente Fernando Martins comunicou aos jogadores duas circunstâncias: a primeira, o valor do prémio de jogo; a segunda, o almoço que teria lugar, no dia seguinte, no Hotel Altis, para despedida do treinador Pal Csernai. E reforçou, sabedor do clima tenso que tinha marcado a época: «Atenção, isto não é um convite, é uma convocatória.» No dia seguinte apenas dois jogadores - os que tinham tido problemas mais graves com Csernai - faltaram ao almoço. Fim de temporada, férias à porta, Taça ganha, o ambiente manteve-se distendido e até mesmo as palavras de simpatia trocadas no fim entre presidente, treinador e jogadores prenunciavam, pelo menos, um final pacífico para o consulado de Pal Csernai.
Na hora dos discursos, Fernando Martins ofereceu a Csernai uma águia em bronze, que o técnico húngaro agradeceu.
Porém, à saída do hotel, com o ar mais descontraído do mundo, Pal Csernai ofereceu o símbolo benfiquista ao atónito porteiro e lá foi à vida dele, de mãos a abanar...

MACEDO DE CAVALEIROS
NAS duas épocas anteriores, com Eriksson, foi instituído um sistema de multas que penalizava os atrasos. O treinador sueco marcava uma hora - para a saída do hotel, refeições ou treinos - e cada minuto de atraso tinha uma penalização pecuniária, que revertia para uma caixa de que Sheu Han era fiel depositário. O dinheiro destinava-se a intervenções de ordem social e o que sobrava «pagava» o jantar de fim de época no Faroleiro, no Guincho. Com Pal Csernai este hábito foi alterado e o técnico húngaro, apesar da fama de disciplinador, não dava muita importância a pequenos atrasos, pedindo ao prevaricador, em tom de brincadeira «eine flasche wein» («uma garrafa de vinho»)
A 6 de Janeiro de 1985 o Benfica deslocou-se a Macedo de Cavaleiros para uma eliminatória da Taça de Portugal e a cada elemento da comitiva foi oferecida uma caixa com três garrafas de Vale Padrinhos. O técnico húngaro, que não era propriamente abstémio, torceu o nariz a que fosse oferecido álcool aos jogadores e o ambiente ficou de cortar à faca. Nessa noite a comitiva do Benfica (que a meio da semana jogaria na Póvoa de Varzim) pernoitou em Macedo de Cavaleiros e os jogadores combinaram deixar, pela calada da noite, todas as caixas de vinho à porta do quarto de Pal Csernai, em sinal de desagrado. No dia seguinte, ao pequeno almoço, o treinador encarnado mantinha-se imperturbável, como se nada tivesse acontecido. Foi o roupeiro (agora diz-se técnico de equipamentos...) José Luís que desvendou o mistério: pela manhã, Pal Csernai, vendo o estendal de caixas de vinho à sua porta, chamou-o e pediu-lhe que arrumasse as caixas no porta-bagagens do autocarro. Isso aconteceu a uma segunda-feira, a equipa viajou para a Póvoa onde jogou na quarta-feira, regressando a Lisboa nessa noite. E, chegado à Luz, que fez Csernai? Pediu a José Luís que pusesse as caixas no seu carro e, feliz, zarpou com 48 garrafas de Vale Padrinhos. Sem nunca dar parte de fraco...

A TÁCTICA
OS resultados desportivos do Benfica baixaram em 1984/85 (43 pontos e terceiro lugar) relativamente a 1983/84 (53 pontos e campeão) e 1982/83 (51 pontos e campeão). A meio da época os jogadores juntaram-se e nomearam uma comissão que foi reunir-se com o presidente Fernando Martins, no Estádio da Luz, na busca de uma solução que evitasse o descalabro. Fernando Martins não podia ter sido mais claro no que disse a essa delegação: «Aconteça o que acontecer, o treinador não sai. No Benfica respeitam-se os contratos e quem não acreditar nisso lembre-se que eu mantive Lajos Baroti até ao fim e quem o contratou foi a Direcção anterior, de Ferreira Queimado. Por isso, falem entre vocês, mudem a táctica, façam o que acharem melhor dentro do campo, mas o treinador não sai.»

SEM NOMES
UM dos mais graves incidentes da época 1984/85 no Benfica aconteceu durante um treino vespertino, no Estádio da Luz. Deixemos os nomes dos protagonistas de lado. Bastará dizer que nunca disputa de bola absolutamente casual entre os jogadores «A» e «B», o «A», que tinha vindo de uma lesão grave, ficou no chão a queixar-se (tinha acabado de fracturar o perónio). Csernai que estava a cerca de 30 metros do lance aproximou-se, apercebeu-se do que «A» tinha ficado maltratado e explodiu contra «B» (que realmente nad fizera senão disputar a bola...) gritando, em alemão, «assassino» e «psicopata». O jogador «B» percebeu o que Csernai lhe chamava, sentiu a injustiça, perdeu a cabeça e foi directo ao treinador que também não estava com aspecto de quem se ficasse. Valeu a intervenção rápida do jogador «C«, depois ajudado pelos restantes companheiros, que impediu que chegassem a vias de facto.

LEITÃO DA BAIRRADA
TONI já se referiu em público a este episódio, daí que seja possível não omitir nomes. Trata-se de um caso de estudo relativamente à personalidade complexa de Pal Csernai, que pode ser catalogada, no mínimo, de desconcertante. Sejamos claros. Csernai tinha passado muitos anos na Alemanha e não tinha paciência para segundas opiniões e não valorizou - como Eriksson - a ajuda de Toni. Costumava aconselhar-se, quando muito, com dois elementos do plantel que lhe mereciam maior confiança...
Ora a vida de Toni com Csernai não foi fácil (para colocar as coisas de forma suave...) até ao dia em que veio à conversa o leitão da Bairrada, que o húngaro nunca provara. Toni, sempre coração grande, disse que era da zona, conhecia quem assava o bicho na perfeição e prometeu trazer uma iguaria daquelas a Csernai. Dito e feito. Um leitão e espumante da Bairrada viajaram para Lisboa, Csernai convidou Toni para se juntar a ele e à namorada no repasto e a partir daí tudo mudou. O agreste Pal Csernai passou a tratar Toni de forma absolutamente diferente e o então técnico adjunto dos encarnados, perante esta situação, não se cansava de repetir: «Ai se eu soubesse antes...»

PEÇAS SOLTAS
ALGUNS elementos soltos podem ajudar a compreende melhor Pal Csernai. por exemplo, praguejava em húngaro e alemão, indiscriminadamente. Para evitar que Wando se agarrasse demasiado à bola incentivava, nos treinos o defesa-direito Carlos Pereira (que não se fazia rogado...), actual presidente da AG da Liga de Clubes, a «ir às pernas» do extremo-esquerdo brasileiro. Não ligava à pronúncia: para ele Eusébio, segundo técnico adjunto era Yusseff e Humberto Coelho, que ainda fez o início dessa época, era Roberto. Pedro Magro, ex-médico das selecções nacionais, era à altura um jovem estudante de Medicina que tinha feito a formação na Escola Alemã. Aceitou ser intérprete de Csernai e se quiser vai a tempo de escrever um best seller.
Um dia, um dos mais cotados jogadores do plantel, que tinha uma boa relação com Csernai, não gostou de ser repreendido num exercício e em português vernáculo, de fazer corar Gil Vicente, disse a Pal Csernai o que pensava do assunto. Pedro Magro traduziu que o aludido jogador não estava muito satisfeito. Mas o craque queria mesmo que a tradução fosse fidedigna, ao que Pedro Magro, sempre diplomata, suplicava: «Ó sr... não me faça isso, eu não posso traduzir isso.»
Muitos treinos do Benfica eram no campo 3, o relvado que não era nem o principal nem o da pista de atletismo. E eram sempre à porta aberta. Se, quando as coisas tinham corrido mal no fim de semana (muitas vezes o famoso «grupo da árvore») aproveitavam o trajecto entre o campo 3 e a cabina, que ficava no estádio principal, para protestar com Csernai, este ia direito a eles e pedia-lhes satisfações. Invariavelmente calavam-se. Era assim Pal Csernai..."

José Manuel Delgado, in A Bola

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