"Numa novela dos bons tempos havia a figura de um comerciante extremamente ganancioso que fazia fortuna a fantasiar os efeitos milagrosos da morte do santo, numa árvore que despertava moribundos, e que acabou morrendo ele próprio sufocado no meio das suas medalhinhas quando o poético feitiço foi desfeito pela prosaica realidade.
Era o Zé das Medalhas original que parece encarnar na figura dos portugueses desportivamente iletrados que, de quatro em quatro anos, encarnam a tal figura ignorante e gananciosa que pretende enriquecer o seu palmarés à custa dos pobres atletas, até “morrer” também sufocado no banho das medalhas olímpicas que, na realidade, são tão falsas como a morte fingida do Roque Santeiro.
A reaparição de uma Missão de Portugal despojada de soberba, transparente como os resultados possíveis que alcança no dia a dia dos Jogos, acabará por também revoltar a populaça que se sente enganada por esses Zés das Medalhas proféticos que encarnam na figura dos jornalistas, enviados especiais ao mundo do faz-de-conta em que o desporto mais subdesenvolvido da Europa alinha no areópago dos Deuses do Olimpo.
Da minha experiência, sei que há dois tipos de Jogos Olímpicos para os portugueses. Os que correm muito bem, como Atenas 2004, em que caiu do céu uma medalha na prova de ciclismo logo no primeiro dia. E os que correm muito mal, como os de Pequim 2008, em que vivemos uma semana de frustrações agudas até ao voo picado de Nelson Évora.
Em Atenas, ganhámos três medalhas. Em Pequim, conquistámos duas, mas uma de ouro. E em Londres, apenas uma. E no Rio de Janeiro, outra. E, finalmente, em Tóquio, longe, em pandemia e sem febre olímpica, o recorde de quatro, com mais um ouro de Pedro Pichardo.
É isto o desporto português e ganhar uma medalha olímpica será uma das proezas mais difíceis e complexas de alcançar por qualquer ser humano, ainda que se afigure banal quando olhamos para a Simone Biles, por exemplo. Acontece que a ginasta americana não é deste mundo terráqueo onde vivem estes Zés de um povinho que não se educa nem se deixa educar.
Os primeiros Jogos de que me lembro são os do México 1968, com os velocistas americanos e, sobretudo, uma parafernália de modalidades desportivas que eu nem imaginava existirem. E em Munique 1972, sentado a um canto de um café em São Martinho do Porto, fugindo da praia e do sol, me locupletei com as sete medalhas de Mark Spitz, o meu primeiro herói fora do futebol.
Demorei até chegar à idade adulta para ver um português conquistar uma medalha olímpica, o grande Armando Marques, numa competição tão emblematicamente lusitana como o Tiro com caçadeira. E só depois a prata do Carlos Lopes, “roubado” em Montreal, oito anos antes do primeiro ouro português, em Los Angeles 1984, quando eu já era pai de família.
Como este processo é longo e intrincado! Como a experiência nos molda para a realidade inexorável! Como é surreal, fantasioso, enganador, este permanente piscar de olho dos media e dos seus profissionais pouco profissionais que são capazes de perguntar a um atleta, que sabe ir defrontar uns vinte ou trinta melhores que ele, se espera (ou sonha) com as medalhas.
Escolhi esta figura do Zé das Medalhas - que também podia ser aquele comerciante da Baixa que fazia aparecer milhões de euros do BES em contas secretas na Suíça - para encarnar a figura de todos os que alimentam este “sonho” irrealizável na ânsia de fazerem Portugal parecer o que não é, não foi e não será nos próximos 40 anos, o tempo de atraso estimado do nosso Desporto relativamente ao espanhol, por exemplo.
Nesta equipa olímpica só há dois medalhistas encartados, o Fernando Pimenta, que vi nascer no FOJE de Lignano, faz agora 18 anos, e o Pedro Pichardo, que foi adoptado. Seriam deles as tais duas medalhas que nos afogariam, perdão, que nos afagariam o ego no final deste ciclo, portanto, até abaixo dos objetivos optimistas do COP, na sua diplomacia negocial por mais apoios do Estado.
Não quer dizer que não haja olímpicos milagres como os que excitavam Asa Branca. Ainda ontem vi um judoca francês abaixo do 30.° lugar do ranking chegar à medalha de prata perdendo à justa com o n.° 1 mundial. Mas não pode ser vendida como uma probabilidade, nem sequer uma possibilidade.
A realidade do Desporto português é existir uma atleta, só uma, a Filipa Martins, que por mérito e trabalho, conseguiu voar perto das Simones Biles deste tempo. Dizem que fez História, mas nunca terá o seu nome escrito a ouro ou prata no mural da Travessa da Memória, porque ainda está a anos-luz de, realmente, fazer História: ela ou uma sua neta ou bisneta.
Quando penso em Domingos Castro, em Gustavo Lima, em Miguel Maia e João Brenha, em João Rodrigues, em João Costa, super-atletas que não chegaram ao pódio olímpico, basta-me para não exigir algo que não faço ideia de como possa ser alcançado.
E prefiro ajudar a sufocar num banho de medalhas de aplauso e reconhecimento todos os que no dia mais belo das suas vidas desportivas, por vezes em escassos segundos ou minutos, tocaram a glória de participar nos Jogos Olímpicos, do que na frustração gananciosa e tão lusitana de fingir, à boleia de qualquer proeza individual como a prata do Sérgio Paulinho, que somos, afinal, tão bons como os melhores.
Porque somos, apenas, o que somos."
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