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quinta-feira, 13 de julho de 2023

Bem-vindos ao EK194, o voo que vai arquivar a utopia


"Dizia-me um amigo outro dia que foi a um concerto e que à frente dele estava um homem com o telefone sintonizado no Portugal-Ucrânia, o tal que movimentou mais de 20 mil pessoas para o Estádio do Bessa. Não me lembro qual era a banda sonora, mas presumo que o recital de Jéssica Silva tenha sido agradável até num pequeno ecrã.
Parecia, mais do que o derradeiro teste para o primeiro Campeonato do Mundo da história portuguesa, uma celebração do futebol jogado por mulheres no nosso país. As bancadas, repletas de famílias e canalha, estavam vestidas de pessoas despidas de preconceitos, havia bandeiras, cantorias, gritos, miúdas e miúdos cheios de encantos pelas jogadoras. O selecionador Francisco Neto, inovando no desenho tático, até passou a mensagem de que aquele era realmente um particular útil para adicionar outras camadas à maquinaria lusitana – já o tinha prometido numa entrevista à Tribuna Expresso –, mas o que elas transmitem é maior do que o que têm de fazer.
“Dá-me mais gozo ver um jogo delas do que a maioria dos jogos dos homens”, disse-me outro amigo nesse outro dia. Longe de ser um mago da tática e das ideologias futeboleiras, o Duarte comentava que via nelas a vontade e o prazer de jogar. No fundo, arrisco eu, o que aproxima o povo. Depois, continuou a beber cerveja. Que certeiro. Vejo o mesmo, é como se a sombria versão do profissionalismo ainda não tivesse devorado o que é amador (ou a verdade). Jogam como nós, os que só gostamos de jogar, jogariam. Kika, que nem pisou o lado certo do relvado nessa noite, é tudo o que uma criança ou um adulto com boa memória da infância pode desejar ser. Jéssica Silva, livre como o vento, é um acordo de paz diário com a modalidade. Andreia Norton concorda com as travessuras e assina umas quantas da sua autoria. E nesse tipo de poesia há sempre o anjo silencioso: Andreia Jacinto, obviamente. Artistas.
Gente como Ana Borges, Carole Costa e Dolores Silva representam a serenidade e a responsabilidade. No campo e, seguramente, fora dele. Viveram outros tempos do futebol feminino em Portugal, jogaram com outras mais velhas que lhes contaram como era antigamente. Conheceram a terra que cuspia pó debaixo dos dentes das chuteiras. Sabem de cor como escorre o desdém e a ignorância de tantos. Ouviram relatos daquele hiato de 10 anos em que a seleção, como se fosse um capricho dos cartolas, foi cancelada. Tiraram-lhes o futebol, aquele futebol, por isso qualquer comparação é inútil ou desonesta. Agora que estão a viver o que lhes foi sonegado e é devido, falta também encherem o peito de ar e exigirem muito ou tudo. A gratidão não tem lugar, nada têm de agradecer por serem boas no que fazem. É uma profissão e o que conquistarem hoje, no campeonato das dignidades e dos direitos, será o chão que vão pisar as Julietas, as Marias Teresas, as Isabelas, as Madalenas e as Ineses de amanhã.
Depois de uma visita ao Palácio de Belém e de mais um treino, as futebolistas da seleção nacional vão entrar no avião que as vai levar para o outro lado do mundo. Vão viver o que muitas delas nem sonharam. Não era sequer ficção científica há uns tempos, era ainda menos improvável do que o que pertence à impossibilidade, era um filho esquecido de uma utopia. Lá vão elas no EK194 e nós, esperançosos como a imaginação de uma criança, vamos com elas."

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