"Preciso de confessar-vos algo: esta semana não tive jogo, por culpa de uma vaga de lesões, e fui jogar padel. Sim, padel.
Não é de agora, na verdade. Tenho andado a jogar às escondidas há cerca de um ano com três amigos, também eles jogadores de fim-de-semana. Esta quinta-feira, e uma vez que não havia bola, decidimos ocupar o vazio com 90 minutos de padel, entre as 22h30 e as 00h00, apesar de um mal disfarçado e generalizado sentimento de culpa. A sensação de que, não só estávamos a trair os nossos colegas, como a colocar em causa e o nosso amor e fidelidade ao futebol.
Toda a vida pratiquei outros desportos (ténis, ciclismo e corrida, cheguei mesmo a integrar um clube amador há quatro ou cinco anos e fazer uma meia-maratona em passo de lebre), mas nunca encarei nenhuma destas modalidades como um substituto ou um desporto concorrente. Podia correr quatro vezes por semana, sempre que posso ainda o faço, mas era (ainda é) aquela hora de bola semanal que me definia. Mais do que um desportista sou um jogador de fim-de-semana. Pelo menos, acho que ainda sou.
Na manhã seguinte, sexta-feira, fui levar a minha filha à escola. Enquanto tirava o cinto de segurança, uma das suas colegas de sala entrou no carro, agarrou na raquete e começou a gritar «olha pai, o pai da Júlia também joga padel». Podia ter feito refeito referência à bola de futebol, ali ao lado, mas, porventura porque o pai não joga ou porque é um objecto banal, não o fez.
Jogador experimentado, quis saber há quanto tempo jogava, advertiu-me de que isto era um «vício» e que jogava quase todos os dias - sem contar com as aulas. Antes de fechar a porta, aconselhou-me ainda a comprar uma nova raquete e disse-me que, mais dia menos dia, acabaria por deixar de lado o futebol. Despedi-me com um sorriso falso, coloquei a raquete no fundo da mala e prometi que não voltaria a jogar tão cedo. No mínimo, que jamais cederia à tentação de ter aulas ou que se transformasse num vício.
O futebol, pelo menos para mim, nunca foi um vício, mas sim uma necessidade. Sobretudo um prazer. Há dias em que me apetece ficar a jogar a noite toda, mas é raro acabar um jogo e ter vontade de jogar no dia seguinte. O corpo precisa de descanso. A cabeça também. Aquela hora é capaz de durar e alimentar-me durante toda a semana. Com o padel não. É diferente. É como se o futebol fosse uma refeição completa e o padel uma entrada, um doce, tremoços, peanuts. Nunca é suficiente. E isso irrita-me, confesso. Mas nada me irrita mais do que esta ideia de que, para evoluir, é obrigatório ter aulas. O meu tio, que tem mais de 60 anos e também joga todos os dias, às vezes várias vezes ao dia, tem aulas; a minha enteada quer ter aulas; a maioria das pessoas com quem já joguei tem ou já teve aulas e não resiste à tentação de me aconselhar a fazer o mesmo. Que jogo bem e tal, mas que me faria bem umas «aulitas», para corrigir alguns vícios e, acima de tudo, o posicionamento.
Não percebo.
Isto é, percebo, mas não entendo. A beleza dos jogos de futebol entre amigos é precisamente essa ausência de treino. É normal que se corrija, critique ou goze com o posicionamento e as características de alguns colegas, chega mesmo a ser desesperante que os erros se repitam jogo após jogo, mês após mês, ano após ano, na maior parte dos casos uma vida inteira, mas nenhum jogador de fim-de-semana sugere ao outro que vá ter aulas ou treinar. «Desculpa Zé, mas enquanto não trabalhares esse pé esquerdo com um técnico especializado recuso-me a jogar contigo»; «Carlos, ou procuras um treinador (ou mesmo um psicólogo) que te ajude a levantar a cabeça e a ser menos egoísta, ou para mim basta!»
É o que é. Faz parte. Quem sabe, sabe. Quem não sabe, não sabe. Tivesse jogado e aprendido quando era suposto. Em criança. Nos clubes. Na rua. Na televisão.
O padel ainda não passa na televisão. Nem se joga nas ruas. Talvez um dia, quando houver campos espalhados pelos bairros e as crianças possam jogar e esfolar os joelhos livremente; quando deixar de ser um negócio e passar a ser um desporto - fazendo o percurso inverso à maioria das modalidades, que começam por ser um desporto e acabam transformadas num negócio - aí sim, talvez consigamos jogar como menos sofreguidão ou sentimento de culpa.
Até lá, vou jogando, mas sob protesto. Sempre com uma mão no bolso e outra na consciência."
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