"A nuvem negra que caracteriza a imagem dos árbitros é algo que existe desde que a figura foi implementada no futebol moderno, em 1881.
A introdução do chamado “desmancha-prazeres” (segundo muitos, o responsável por retirar a alegria que jogadores e adeptos entregavam ao jogo), tornou-se obrigatória devido ao crescimento exponencial da modalidade e à necessidade de regulá-la, para evitar batota e conflitos desnecessários.
Hoje em dia, os árbitros não são apenas os tais chatos que impõem paragens ao jogo: são também corruptos, bois pretos, aldrabões, malandros e até “descendentes de senhoras meretrizes”.
Esta intolerância aos homens do apito ganhou contornos maiores quando as transmissões televisivas passaram a acompanhar o futebol ao mais ínfimo detalhe, potenciando análises excessivamente dedicadas às suas decisões. É assim um pouco por todo o lado, mas mais em ligas onde o pretexto da latinidade, a emoção excessiva e alguma chico-espertice acabou por conduzir alguns a visões extremamente parciais, que nada abonam para a otimização do jogo ou valorização do negócio.
Seria interessante tentar perceber o que nos move nesta conduta, nesta forma tão redutora de ver e comentar noventa minutos de bola.
Na minha opinião, é mais ou menos isto:
1. Por parte daqueles que, como eu, se dedicam à análise das arbitragens, a missão foi sempre bem intencionada: partir da decisão de campo para o esclarecimento pedagógico. Ou seja, pegar no lance e procurar explicar a regra, para que conhecimento equivalha a compreensão. No fundo, quem comenta arbitragens tem o dever de o fazer com elevação e sensatez, mas também com independência e pragmatismo. Sem corporativismos. Deve tentar humanizar o papel do árbitro e mostrar às pessoas que boas e más decisões nada têm a ver com atuações deliberadas ou estratégicas. Infelizmente a realidade tem mostrado que esse efeito é muitas vezes adulterado: a maioria das pessoas não quer aprender as leis ou compreender a visão de quem decide, apenas saber se a opinião do “especialista” valida a sua. Servir de arma de arremesso é a antítese do que nos move.
2. As intervenções mais acaloradas de alguns dirigentes quando se sentem prejudicados e tentam defender ao máximo o seu clube, sem nunca terem a honestidade de referirem as vezes que foram beneficiados. Essas declarações, quando ácidas, agressivas e ditas em contextos delicados, instigam a condutas que o futebol dispensa. Delas nascem tantas vezes insultos, ameaças e agressões a árbitros e respetivas famílias, que lhes retira foco e concentração para a função.
3. Acontece exatamente o mesmo quando alguns clubes dão indicação aos seus departamentos de comunicação para personificarem tudo o que o futebol não espera deles. Em vez de promoção pela positiva, há cada vez mais posts, tweets, programas televisivos, newsletters e comunicados que são estrategicamente pensados para dividir e confundir. Quando absorvidos por adeptos mais influenciáveis, são fortes instigadores de tudo o que é inaceitável num desporto desta dimensão. Acontece recorrentemente, com vários protagonistas, sem que muito seja feito para o fiscalizar e travar. Incompreensivelmente.
4. Análises de meia dúzia de comentadores desportivos (não todos) que têm dos respetivos media carta branca para desinformar e intoxicar a opinião pública, recorrendo a discursos corrosivos e confrangedoramente parciais. Dentro desses há os que o fazem apenas por amor à camisola (menos maus) e os mais ardilosos, que esperam cair nas boas graças de quem os pode promover a gente importante. Os tais wannabees. Quem comenta publicamente tem obrigação de conhecer o peso e influência de cada palavra que diz ou escreve. Pode e deve fazer a defesa intransigente da sua dama, mas ser brejeiro no discurso, parcial na informação ou incendiário na forma é opção e essa não me merece nenhum respeito.
5. Há alguns jornalistas (e ex-jornalistas) que não conseguem, nas suas análises profissionais, esconder a paixão pessoal que os move. Toda a gente no meio sabe quem são, para onde escrevem e onde falam, tal a forma reiterada com que se prestam a esse papel. Felizmente são poucos, muito poucos, mas a doença do coração é tanta que o seu pensamento racional sai toldado. Não vejo neles malícia, apenas fraqueza. Incapacidade de manterem a distância. Alguém devia dizer-lhes isso, sob pena de mancharem carreiras que nalguns casos foram fantásticas.
No meio de tantos contributos (diretos e indiretos) para a pressão nefasta a que os árbitros estão sujeitos por estes dias, duas certezas:
- O silêncio permanente da classe não os defende. Há momentos em que é preciso bater o pé e mostrar proteção a tanta crispação exterior;
- A incompetência técnica que alguns têm evidenciado (em campo, em sala e no escritório) mostra que há ainda muito trabalho a fazer da base ao topo. É preciso sentido crítico apurado, porque sem isso não há evolução possível.
O futebol precisa de cuidar melhor de si.
Quem tenta estragar o produto, seja de que forma for, não pode passar impune, como tantas vezes passa. Tal como não pode atuar ao mais alto nível quem já provou não ter qualidade técnica para tal."
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