"“Jornalixo”, a cartilha dos bolaplanistas
Quando o nosso clube perde, a única verdade que sobrevive é a forma da bola. Continua redonda como a Terra, mas tudo o resto é aplanado pelos buldozzers da “verdade”, tudo o resto é negativo, é negócio, é negacionismo - seja por crença, proveito ou imbecilidade. Tornou-se mais fácil acreditar em “fake news” do que em notícias.
Chamam-lhe “jornalixo” - é a primeira vez que assumo esta palavra, cuja existência estava mentalmente proibido de reconhecer.
É negativo porque teve origem, desenvolveu-se e sustenta-se no obscurantismo da ignorância e na religiosidade fanática do clubismo. Quanto menos “cultura desportiva”, quanto menos prática e busca do conhecimento, mais intolerância, mais terraplanismo: é o “gado”, como chamam no Brasil à seita dos seguidores acéfalos do capitão Bolsonaro, irracional e doentio, cuja profissão de fé passa por não ler e não gostar da imprensa e ver só a televisão de que também se diz não gostar.
Por cá, o juramento solene do vigilante escuteiro do bolaplanismo obriga a não ler os jornais desportivos, excepto as “capas” para acompanhar a tendência das manchetes, e passar o serão em transe com os “cartilheiros”, para estar em condições de aguentar o confronto da máquina do café, com o colega do clube rival, a meio da manhã do “dia seguinte”. Este foi, aliás, o sugestivo nome de um dos célebres areópagos televisivos que todas as semanas julgam a existência da verdade e assassinam à pancada verbal a inteligência colectiva e o original conceito de um programa de diversidade com gente civilizada a discutir bola e clubes - e não de “três estarolas”, os “médicos, advogados e economistas” dos pesadelos de Carlos Queiroz -, em que a ingénua ideia original de Jorge Perestrelo veio a degenerar depois de adaptada ao formato de guerrilha tóxica por Emídio Rangel.
É negócio porque, como definiram os romanos antigos pela “negação do ócio“ que vai muito além do valor superficial de um mero jogo, aquilo anda tudo ligado numa grande conspiração de interesses e contrapartidas. Não se confina à produção e venda de jornais, publicidade e direitos de imagem, mas abarca as chorudas comissões dos agentes poderosos, a corrupção de dirigentes, árbitros e jogadores de clubes pequenos e as avenças dos “jornaleiros” - tudo sabendo ao pormenor, sem comprar um jornal e a ver a bola somente no “canal Inácio”, porque não se pode contribuir nem com um cêntimo para financiar essa conspiração monstruosa.
É negacionismo porque, se não ganhamos, é mentira. Há-de haver um penálti inventado, um auto-golo suspeito, um lançamento lateral fora do sítio, um cartão amarelo a menos, um minuto a mais, que não deixarão dúvidas de que aquilo estava tudo comprado e a “verdade desportiva” foi violada - e, claro, a imprensa é cúmplice porque esconde a verdadeira razão do resultado indesejado e é culpada porque dá a notícia.
O bolaplanista tem a esperteza de descortinar que a falta de “isenção” dos jornais e jornalistas resulta da “guerra das audiências”, publicando factos falsos ou distorcidos para venderem mais, numa corruptela do que se convencionava chamar de sensacionalismo da imprensa tablóide, no século passado. O absurdo desta convicção empírica é a certeza comprovada de que nunca se venderam tão poucos jornais nem as audiências televisivas foram tão baixas e desqualificadas - mais por repulsa selectiva das mensagens do que por falta de qualidade dos mensageiros.
“Todos cúmplices, em rebanhos, a seguir o protocolo”, sintetiza o “rapper” Estraca no seu “Jornalixo”. “Mas na luta pela verdade, que se fodam os protocolos”.
“Pois, mas disto ninguém fala” - é a senha para ingressar nas tertúlias do “whatabout” futebolístico militante, verberando as fontes, também chamadas de “fontanários”, que terão dado a informação que interessa como contraponto da realidade que não interessa, e recebendo de volta a contrassenha que distingue os bolaplanistas profissionais:
“Vocês sabem do que eu estou a falar”.
“Deixem
passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.”
- Miguel Torga, “Santo e Senha”
A seguir: K de Keeper"
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