"Quando Fernão de Magalhães tocou a Terra do Fogo, encontrou indígenas enormes, para o padrão da época, e com pés tão impressionantes que lhes chamou “patagões”. Era o primeiro choque de culturas da sabedoria europeia com a destreza pedestre dos argentinos, que não se cansa de espantar o mundo, na arte de dançar o tango e de jogar futebol.
Pela sexta vez, a Argentina, sempre subalternizada emocionalmente ao espalhafato brasileiro, vai disputar a final do Mundial, liderada por um patagão de corpo franzino, um anão, tantas vezes vítima de “bullying” por não ostentar os centímetros, os músculos, nem os caprichos dos deuses olímpicos.
Se o Mundial fosse um campeonato de boxe, teríamos um peso ligeiro à beira de derrotar por K.O. técnico todos os pesos pesados do futebol atual. Melhor Jogador, Melhor Marcador, Melhor Passador - o mundial do Catar é o Mundial de Messi, que ontem se tornou também o jogador com mais partidas nesta competição e o maior goleador da seleção em Mundiais - derrubando recordes de Maradona sem margem para dúvidas nem aferições capilares.
Talvez por ter nascido a norte da Patagónia, Messi foi condenado pelas fadas madrinhas a viver nos limites do nanismo, mas compensado por dotes artísticos, maravilhosos e inesgotáveis no controlo da bola, que lhe terão sido administrados junto com a hormona de crescimento, a somatropina só autorizada para fins terapêuticos pelas autoridades anti-doping, que os druidas da medicina lhe insuflaram no início da adolescência, dando-lhe os milagrosos 20 centímetros que faltavam para se tornar no rei dos anões do Futebol.
É esse bocadinho a mais que lhe permite humilhar adversários com toda a naturalidade e, por vezes, requintes de malvadez, como fez na jogada do terceiro golo frente à Croácia, transformando o magnífico Gvardiol num Orc desnorteado e duro de rins.
Golos e passes de morte, corridas, fintas, dribles, cruzamentos e passos de tango - uma forma técnica e física exuberante, aos 35 anos, a aparecer ao mundo quando o país e a equipa precisavam dele, sem se esconder, sem se escusar. Um gigante em corpo de minorca.
Como em “Aleph”, o conto de José Luis Borges, o Messi da literatura argentina, defrontamo-nos com um insolúvel paradoxo da condição humana, entre a imortalidade e a vulnerabilidade terrena, a identidade e o génio, a simplicidade e o sobrenatural, a aparência e a essência. Como isto anda tudo ligado, até Borges recorreu à mitologia nórdica dos elfos e duendes para descrever “Zahir”, a filosofia islâmica sobre o que os nossos olhos têm de ver para crer:
“Algo que uma vez tocado ou visto, jamais é esquecido - e vai ocupando o nosso pensamento, até nos levar à loucura”, como o futebol de Lionel Messi, agora a apenas uma vitória de completar a trilogia Copa América, Jogos Olímpicos, Campeonato do Mundo.
Com o auxílio de um treinador a sério, o mais jovem do Mundial, capaz de mudar peças, de trocar sistemas e de gerir génios sem dramas nem polémicas, ou de lançar jogadores jovens, semi-desconhecidos, em funções capitais, sem receio dos nomes, nem das antiguidades, nem dos egos.
A Argentina fora derrotada no jogo de abertura pela Arábia Saudita, mas absorveu o choque sem se desunir, sem se desfocar, sem duvidar, sem trocar o supremo objectivo por pequenas glórias transitórias de percurso, com a sabedoria e a experiência de quem sabe que os recordes vêm no fim de tudo, como uma “chocotorta” depois do “bife de chorizo” - e não o contrário.
“Desfrutar”, resume Messi quando lhe perguntam o segredo desta receita vitoriosa. Desfrutar como equipa, à altura da pressão e das exigências, e transformar a “última dança” projectada pelo marketing da FIFA em tango de uma pessoa só!
Talvez injusto para os Otamendi, para os Fernandez, para os Alvarez, mas quando a influência real de um jogador é tão grande, tão esmagadora, não há espaço para invejas, nem ingratidões, nem hipocrisias. Até porque metade dos golos dele em campeonatos do Mundo (9 em 20) são ofertas em bandeja aos colegas, como aconteceu ontem a Alvarez no lance do 3-0.
A Argentina é uma seleção em que todos e cada um se mostram conscientes do respectivo lugar, dimensão e importância, onde anões e patagões se complementam e se apoiam, dentro e fora das quatro linhas, sem espaço para salvadores da pátria.
Só falta, agora, o último “round”, o último teste à dúvida eterna dos hedonistas dos estádios: quem é o maior?
O irritante cupido pedipulador, a quem ninguém consegue parar, em corpo de duende como o Oberon de Shakespeare? Ou o poderoso, atlético e belo, imune ao envelhecimento e reencarnado no próprio corpo, como o Glorfindel de Tolkien?
Um duende minorca ou um elfo colossal?
O Catar está a apenas 90 minutos de validar para sempre o Rei dos Gigantes da nova mitologia futebolística!"
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