"Nunca a expressão “Mãe-África” fez tanto sentido como neste dia da meia-final do Mundial entre França e Marrocos, a primeira com uma seleção africana. Ou melhor: com duas.
Uma recheada de jogadores filhos ou netos de africanos, contra outra com mais de metade de internacionais nascidos noutros continentes - todos orgulhosos e vinculados às respectivas raízes.
Muitos povos em luta social e política contra o estigma do colonialismo irmanaram-se fervorosamente nos últimos dias aos 40 milhões de marroquinos no sonho de celebrar a simbologia de um triunfo à escala mundial sobre os pesadelos da opressão e da escravidão que esteve na sua génese. No Brasil, chamaram-lhe “Brarrocos”.
Marrocos apresentou-se com africanos naturais do Canadá, de Espanha, de França, dos Países Baixos, da Bélgica e de Itália.
França com europeus oriundos da Argélia, Congo, Benim, Camarões, Guiné-Bissau, Angola, Mauritânia, Costa do Marfim, Mali e do próprio Marrocos.
Todos nascidos dessa grande, terna, forte e incansável mulher africana, lutadora, trabalhadora e sustentáculo das famílias, como as homenageadas no relvado de Doha pelo “espanhol” Hakimi, filho de Fatima, e pelo “francês” Boufal, filho de Zoubida, após a vitória sobre Portugal.
“Viemos ganhar por África, pelos países que estão em desenvolvimento” - assumiu o seleccionador marroquino, Walid Regragui, ele próprio nascido perto de Paris em 1975, apenas um ano depois de as seleções africanas terem sido admitidas pela primeira vez no torneio da FIFA.
Após se ter coroado novo Califa do Al-Andalus, com as suas vitórias sobre Espanha e Portugal, Regragui desvendou a mudança psicológica que pode vir a mudar a mentalidade das equipas de África para sempre, uma atitude que reflete, precisamente, a rejeição dos seus 14 jogadores nascidos fora de Marrocos ao rótulo da “ingenuidade” do futebolista africano “puro”:
“Há uma ideia baseada na nostalgia preconceituosa de que os africanos precisam ser ingénuos, atacar com tudo, ou então não prestam”.
O “regraguismo”, que promete alastrar a todo o continente como um grande movimento motivador de referência, começando por reinvindicar mais do que os cinco lugares atuais nos finalistas dos Mundiais, sofre todavia de uma patologia crónica que dificulta essa unidade, um paradoxo de ordem racista, uma idiossincrasia à escala continental: muitos povos e países da chamada África negra não se revêem nos países do Magreb e estes, politicamente, estão muito mais virados para a Europa do que para Sul.
O sonho marroquino terminou quando já não era possível ir mais longe, com a derrota inevitável em campo frente a um adversário muito superior, sem margem para o triunfo do romantismo sobre a experiência e o pragmatismo dos franceses.
Um jovem “congolês” nascido na cosmopolita Île-de-France, Kolo Muani, ditou a sentença final à seleção africana que mais alto chegou num campeonato do Mundo. Foi o futebol, em campo, a ratificar sem margem para dúvida a crescente e decisiva influência deste pan-africanismo moderno, em que todos se sentem irmanados por uma matriz comum, independentemente das nações onde nasceram. Mas igualmente e em simultâneo a lei do mais forte, ainda (e sempre?) um país europeu com todo o poder de convencer e reter os melhores talentos.
Além disso, este histórico desafio em marcha à escala transcontinental tem de se haver ainda com um adversário de peso, que é a própria rivalidade a sul e a norte do Sahara.
Quando o continente foi chamado a organizar o Mundial de 2010, um dos “slogans” da candidatura vencedora, da África do Sul, apoiada pelos países sub-saharianos, foi “África somos nós”, marcando uma evidente e profunda distância e diferença relativamente à concorrência de países como Marrocos, Líbia, Tunísia ou Egipto.
E esta questão ancestral não se resolve, tão simplesmente, apenas com a melhor classificação e exibição de sempre de uma seleção africana.
Talvez só com todo o amor das mães de África."
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