"Ingrata será sempre a selecção dos cinco melhores de qualquer posição no relvado de futebol de qualquer clube, assustador é fazê-lo tendo que filtrar os magníficos que compõem a extensa História do SL Benfica, um percurso recheado de sucessos arrebatadores e um chinfrim de talentos ensurdecedores na prática harmoniosa do futebol.
Nos defesas-centrais então há muito por onde escolher, que ao volume ofensivo que se fez tradição como imagem de marca dum jogo á Benfica, é necessário segurança na rectaguarda para soltar os artistas endiabrados do ataque à baliza oposta.
Felizmente para nós, alinha-se no firmamento uma clara linha sucessória de impenetráveis líderes defensivos, líberos que se expressaram desmesuramente como os melhores da Europa nos relvados da antiga e nova Luz e que, por força da própria evolução tecnico-tática do futebol, se foram substituindo de forma que, se não é propositada, assim nos deixa a dúvida de tantas conveniências cronológicas: quase que imediatamente, quando um abandonava surgia outro, tão parecido nas aparências do talento, mas tão progressivo no estilo, que permitiram através das suas expressões futebolísticas perceber o desenvolvimento da posição, em tempos tão arcaica e simplista e hoje vital na obtenção da eternidade para uma equipa.
1.
1 Campeonato Nacional, 4 Taças de Portugal, 1 Taça Latina
188 jogos (1944-53)
Félix Antunes – Também apelidado de “O Pantufas”, sobre o talento de Félix se disse e se tem dito, décadas fora, que suplantava os maiores – mais populares, vá… – nomes do sector defensivo que o futebol português já viu. Coincidentemente, estreou-se na selecção no mesmo dia que se despedia Feliciano, a lenda belenense campeã nacional de quem muito se distanciava do estilo áspero de jogar futebol – e, na partida seguinte ao último jogo de Félix com a camisola das Quinas (o 9-1 em Viena no recital de Ocwirk) estreava-se Germano de Figueiredo, a grande referência da época dourada do futebol nacional. Félix foi, portanto, um marco de transição entre o estereotipado central duro e rezingão dos primórdios e o central moderno, astuto no corte e irreverente no trato de bola, o pioneiro nesse estilo mais arrojado de futebolista que, ostentando todos os argumentos técnicos dum playmaker, preferia distanciar-se dos palcos de decisão, junto da baliza adversária, e assumia ele as rédeas da primeira ideia do conjunto, do primeiro esboço do ataque colectivo ainda no próprio meio-campo. Isto, pode-se facilmente imaginar, foi revolucionário nos anos 40.
Era tão dotado tecnicamente que, claro, iniciou carreira mais à frente, como interior ou médio centro no WM da moda. Jogava nos Unidos, a filial da CUF, e o Benfica não tardou em descobri-lo. Janos Biri, o mago húngaro antecessor de Béla, inventou-o como defesa-central – estávamos em 1948-49. Foi uma loucura geral. Àquele Benfica, que vivia ainda na sombra dos 5 Violinos, chamava-se muitas vezes Sport Lisboa e Félix – não sendo dificil imaginar porquê – e quando Peyroteo saiu, no final dessa época, viveram-se momentos de pânico em Alvalade: não havia substituto credível. Ao fim de algumas experiências lá se descobriu a solução quase perfeita na adaptação de João Martins, mas era tarde demais – nesses entretantos, já o Benfica tinha aproveitado para agarrar o primeiro lugar, conquista de 1949/50. Título que permitiria disputar a Taça Latina, ganha com todo o esplendor e com exibições memoráveis de Félix, que se diz ter encantado a Europa.
Voltemos aos tais 9-1 de Viena, a catástrofe na qualificação para o Mundial de 1954 (onde essa Áustria seria medalha de bronze). Félix é castigado pela FPF por supostos comportamentos erráticos no estágio de preparação e nas viagens de ida e volta.
Joaquim Ferreira Bogalho (presidente do Benfica e o ‘pai’ da Antiga Luz) herda as dores dos responsáveis federativos e quando volta a ver Félix em Lisboa dá-lhe novo castigo e nova multa: um conto. Um balúrdio. Frustra-se Félix, sente-se injustiçado pela facilidade com que é alvo apesar do estatuto. Os jogos que se seguem correm-lhe mal, há ecos de facilitismos do central, fagulhas que ateiam finalmente a fogueira que seria aquele jogo – 18 de Outubro de 1953 – nos Arcos (o pré-Bonfim), no qual o Vitória setubalense dá 5-3 ao Benfica – e Félix é feito culpado dos cinco golos sofridos, à boleia de muito exagero.
No balneário, a versão mais comum diz que atira a camisola do Benfica ao chão e a pisa, justificando que Ferreira Bogalho o irradie enquanto jogador de futebol do Benfica. Alberto Miguéns conseguiu interpretação ímpar sobre o processo, explicando bem os porquês: naquela fase de transição entre o semi e o profissionalismo à séria, havia um meio-termo que era bomba relógio no balneário.
Uma paz podre onde os que chegavam recebiam enormidades em relação aos atletas mais antigos, que nunca tinham oportunidade de renovar vínculos contratuais e precisavam doutro emprego para sobreviver. Era necessário um golpe ‘político’. Sobretudo um pretexto para desatar aquele nó. Em 1953 sai Félix, em 1954 sai Rogério Pipi – também empurrado pela urgência do profissionalismo -, sai Arsénio, sai Francisco Moreira. Foi a lenda Félix a mais duradoura – utilizada como propaganda de justa lição de benfiquismo, que ninguém pode estar acima do símbolo. Félix seria sacrificado em prol duma causa maior.
Muito à frente do seu tempo, o primeiro grande central moderno do nosso futebol numa era em que a televisão era ainda um milagre longínquo para a realidade portuguesa – e por isso pouca justiça se faz ao seu nome e ao seu talento.
2.
4 Campeonatos Nacionais, 2 Taças de Portugal, 2 Taças dos Campeões Europeus
138 jogos (1960-67)
Germano de Figueiredo – Voltamos à conversa dos 9-1 em Viena e do jogo de volta, um 0-0 no Jamor, que é onde Germano de Figueiredo se estreia na selecção – exactamente o jogo a seguir ao último de Félix, ninguém imaginando naquela altura o simbolismo da coisa. Germano tinha 21 anos e dava cartas na Tapadinha com a camisola do Atlético, recém-formado da fusão entre Carcavelinhos e União de Lisboa. Isto em 1947, e é nesse ano que o senhor Germano se inscreve nas camadas jovens do clube – entrando para guarda-redes, também certamente nunca pensando que seria nessa posição que alargaria a dimensão já colossal da sua lenda, quase duas décadas depois.
Guarda-redes começou, avançado foi pela predisposição para domar a redondinha e tratá-la melhor que qualquer fantasista – a defesa-central se fixou por influência do seu ídolo (Carlos Baptista, referência da posição no Carcavelinhos) e adivinhem quem o estreou como esteio defensivo na primeira equipa? Sim, o mesmo que descobriu Félix como número 4, Janos Biri. Coincidências…
Até chegar ao Benfica na viragem da década, com 27 anos, muito penou senhor Germano. A doença – uma pleurisia líquida – retirou-o dos relvados entre 1955 e 57. Recuperou, sacou a II Divisão liderando de braçadeira o seu Atlético já depois de ter caído por terra a oportunidade de ir para Alvalade. Béla Gutmann é campeão em 1959-60, vai buscá-lo e torna o Benfica campeão europeu no ano seguinte. E no outro. Sempre com Germano em destaque, pelas qualidades de liderança além das técnico-táticas. Em 1965, mais uma final – em San Siro, contra o Inter de Helenio Herrera. Jair marca aos 57, Costa Pereira é obrigado a sair no seguimento – Germano, lembrando as origens, volta á linha de golo e mete as luvas. Em meia-hora, três grandes defesas e a tranquilidade tão característica, ganha à custa de vida dificil – aos onze anos fica sem o pai, aos 14 sem a mãe – e duma curiosidade insaciável na procura do conhecimento. Era um homem culto. Mário João, colega de defesa na época dourada, chamava-lhe “Mister Book”. Eusébio dizia que, enquanto ele e outros liam o jornal, Germano agarrava-se aos livros calhamaço, “com mais de 500 páginas”…
Foi o capitão dos magriços e é já como adjunto de Otto Glória que participa na final da Taça dos Campeões de 1968 (contra o Manchester de Charlton e Best). Depois, o silêncio e a seclusão, longe dos holofotes da fama – o que só lhe aumentou ainda mais a lenda…
3.
8 Campeonatos Nacionais, 6 Taças de Portugal, 1 Supertaça
498 jogos (1968-76 e 1977-84)
Humberto Coelho – A evolução perfeita de Félix e Germano, Humberto imitou-lhes as melhores características e adicionou um monumental jogo de cabeça, evitando tão bem golos como os fazia na área contrária: marcou 79 (!) nos 15 anos que passou pelo Benfica, uma enormidade dado que a sua principal função sempre foi defender – e como líbero sempre jogou, só subindo à área contrária quando as circunstâncias o exigiam.
Se Félix foi descoberto pela Europa naquela Taça Latina e Germano assumiu protagonismo nos anos dourados do futebol nacional, Humberto continuou essa tendência e assumiu-se definitivamente como ‘O’ defesa luso de prestígio internacional, uma presença mediática numa altura em que a própria venda da imagem dos protagonistas do jogo se começava a transformar no panorama ofuscante do século actual. O “Beckenbauer Português” chegou ao zénite da fama primeiro em 1981, quando é convocado para a Selecção da Europa que iria defrontar a congénere da Checoslováquia – que fazia 80 anos; E um ano depois, convocado novamente pela selecção europeia para confronto com o Resto do Mundo em Nova Iorque, em jogo com receita a reverter para a UNICEF. O onze: Zoff, Krol, Humberto, Pezzey e Stojkovic; Beckenbauer, Antognoni e Tardelli; Boniek, Blokhin e Rossi, o lendário ponta-de-lança que fez furor no Espanha 82, artilheiro daquela Copa (com seis golos) e protagonista do épico jogo contra o Brasil. Humberto, com uma figura destas na equipa e outras de iguais gabarito… foi quem teve honras de levantar o troféu da vitória!
4.
2 Campeonatos Nacionais e 1 Taça de Portugal
142 jogos e 160 jogos (1988-91 e 1995-96) (1986-89 e 1993-95)
Ricardo Gomes & Mozer – Incorre-se na ofensa grave de aproximá-los enquanto dupla em vez de lhes dar, individualmente, o destaque merecido para tanta qualidade e história construída no Benfica. Mas foi enquanto parelha que Ricardo e Mozer inscreveram (de forma eterna) o nome na memória colectiva da massa adepta do Benfica, pela forma quase sobrenatural com que um disfarçava as fraquezas do outro, pela entreajuda que possibilitava transformar a linha recuada do Benfica num muro de betão armado, numa muralha intrasponível que por si só garantia títulos.
Foram figura numa era em que a 1ª Divisão portuguesa era jogada por 20 equipas e 38 jornadas – uma monumentalidade bíblica – e disputada taco a taco com um FC Porto fortíssimo, campeão europeu em 1987 e com registos inacreditáveis de aproveitamento de pontos. Só á custa duma irrepreensível contribuição de todos os sectores conseguia o Benfica manter a equipa à tona competitiva e dividir os troféus durante aquela década. Em 1988-89, com Toni como comandante, Mozer e Ricardo Gomes juntos (com Silvino na baliza, Veloso na direita e Álvaro Magalhães ou Fonseca à esquerda) garantiram, nas infindáveis 38 jornadas de Liga… 15 golos sofridos! Uma média de 0,39 por jogo, que dura até hoje como o melhor registo defensivo de sempre numa prova doméstica.
5.
6 Campeonatos Nacionais, 3 Taças de Portugal, 4 Supertaças, 7 Taças da Liga
538 jogos (2003-2018)
Luisão – Ainda bem presente na memória de todos o contributo que Luisão deu enquanto jogador, por força de agora o entregar enquanto adjunto da primeira equipa, Anderson Luiz chegou ao Benfica já campeão brasileiro pelo Cruzeiro e assentou desde logo arraiais no eixo defensivo, sendo essencial no renascimento do Benfica pós seca da viragem do milénio.
É Luisão quem marca presença como protagonista nas principais noites do novo Benfica em franca recuperação competitiva e de prestígio: é ele que se antecipa a Ricardo para tornar o Benfica campeão 11 anos depois, é ele que destrona o Liverpool campeão europeu de Rafa Benítez na Luz e possibilita aquele jogo inesquecível em Anfield; é ele que capitaneia o Benfica em 2009-10 e faz golo contra o Braga de Domingos, naquele 1-0 já no sprint final; Interpretou ao lado de Garay a melhor dupla de zagueiros desde Ricardo-Mozer e com isso consegue o que eles não atingiram – duas finais europeias; E é ele que está presente como capitão e líder de balneário no inédito tetracampeonato. Luisão, apesar de dever talento a outras figuras desta lista, chega perto delas pela força da estatística atingida e duma longevidade invulgar para a contemporaneidade.
Segundo com mais jogos na História do Benfica (a par de Veloso e a 37 de Néné), primeiro no ranking de mais jogos europeus (127, o segundo é Veloso com… 77), e o jogador com mais títulos conquistados de águia ao peito (20, mais um que Néné e dois que Coluna). Um monstro sagrado!"
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