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segunda-feira, 9 de maio de 2022

O médio cénico do Bernabéu e o matador que falta


"Em nenhum estádio como no Bernabéu o público faz parte do jogo e os estados de alma da bancada entram em campo, sobretudo quando sobra só uma mão cheia de minutos para mudar a história. É quando uma multidão unida por uma emoção carregada de história faz de onze homens de calções uma alcateia de leões famintos. Aprendi isto cedo, na adolescência, vi-os desmentir eliminatórias perdidas com Rijeka, Anderlecht e Inter de Milão, em 1985, e mais espantosamente ainda no ano seguinte diante do Borussia de M´gladbach (derrota por 5-1 na primeira mão) e de novo do Inter, sempre no caminho para finais ganhas da Taça UEFA. Não era então a melhor equipa da Europa, como tinha sido antes e voltou a ser, mas a jogar em casa nada se comparava. Li mais tarde que os jogadores merengues - Juanito antes de todos, avançado genial mal comportado - provocavam os rivais no túnel. Ainda o jogo não tinha começado e já era preciso fazer-lhes sentir que os 90 minutos seriam muy largos. A fábrica de produzir milagres, como lhe chamou Valdano, mantém-se em plena laboração, vai para quarenta anos qualquer dia.
Normalmente diz-se que o tempo corre depressa para quem está em desvantagem e perante o aproximar do final do jogo. Só no Bernabéu e para o Real sucede o fenómeno oposto. E nem Guardiola, um dos que mais vezes saíram de lá a rir, evitou integrar a lista de vítimas desses minutos finais, mesmo se o árbitro Orsato deu contributo desta vez, mãos largas aos 90 minutos em 6 minutos de acrescento quando as bancadas ebuliam, apenas 3 minutos (que nem deixou concluir) depois de um prolongamento em que só me lembro de perdas de tempo. Mas voltemos a Guardiola, que fez quase tudo certo naquele dia: escolheu bem o onze dentro do que dispõe, geriu sem deixar de controlar com bola, amarrou competentemente Benzema e Vinícius, lançou a vitamina G - Gundogan e Grealish – que podia (e devia) ter fechado as contas, subiu para dois golos a diferença na eliminatória, mesmo assim. E até quando mexeu como um treinador “normal”, retirando Mahrez por Fernandinho para segurar, aos 85 minutos, só pode falar-se numa decisão prematura por ser ali, naquele estádio. Ancelotti, por exemplo, veio a retirar do campo Benzema ainda na primeira parte do prolongamento.
Não há quem se compare a Benzema por estes dias, ganhe ou não a Champions é o jogador do ano, somando ao talento inato uma autoconfiança que impressiona, eternizada naquele penalti panenkado no Ettihad. E é o Real Madrid que tem Benzema no ataque, ele, Vini Júnior e Rodrygo, os novos capitães da areia que esta época consagra de vez. Do lado do City, concretamente no ataque, há craques indiscutíveis, jogadores admiráveis como Foden e Grealish, Mahrez também, mas nenhum tem pacto permanente com o golo. Só Gabriel Jesus se aproxima disso, mas quando do outro lado o finalizador é Benzema não há como comparar. Claro que existem Bernardo Silva – que delicia vê-lo a ser o melhor entre os melhores – e o espantoso De Bruyne, mas, uma vez mais, não é de goleadores que falamos. Uma coisa é marcar golos, outra é ser goleador. Ninguém me tira da cabeça que bastava o Aguero dos melhores tempos e seria inglês o duelo final de Paris.
Falta a Guradiola e ao City um homem que acrescente eficiência individual à proficiência coletiva e que evite que a equipa que mais oportunidades cria seja a que menos golos marca, quando chega aos duelos de topo, a eliminar. Fala-se em Haaland e pode naturalmente resultar, mesmo que não nasceu para o futebol do catalão. Não sendo possível Benzema ou Lewandowski, via mais Harry Kane, a ligar e a finalizar de azul celeste. Ou então João Félix, que tem muito mais de modelo Guardiola que de Simeone, na mobilidade para percorrer toda frente, no ganho de viver mais tempo junto da área contrária, na qualidade rara com que liga em espaço curto, assiste e define. Seria muito bom para ambos, jogador e treinador. Até porque o matador não tem de ser o 9 puro, habitante permanente da área contrária. Por exemplo, no espantoso Liverpool que Klopp reinventou eles surgem das zonas laterais como flechas e é ver os números impressionantes de golos de Salah e Mané, ano após ano, agora também de Diogo Jota e mesmo Firmino.
Volto às remontadas do Real, porque antes de Benzema houve Juanito e Santillana, depois Butragueño e Hugo Sánchez, neste século Cristiano Ronaldo acima de todos, mas também Bale e até Sérgio Ramos quando mascarado de ponta de lança para lances de bola parada em minutos decisivos. O medo cénico dos adversários do Real em Madrid tem sido sempre o medo do que podem fazer os seus lendários avançados na hora da verdade. Ao nível mais alto, as individualidades podem não garantir campeonatos perante opositores coletivamente mais competentes - o City ganha mais que os outros e até o PSG perdeu no ano passado em França - mas quando tudo se decide num jogo só, ou numa eliminatória, uma equipa precisa dos que não vacilam em meter a bola no que parece um galinheiro. Ao City falta um génio finalizador, ao Real e ao Liverpool não. Também por isso estão mais vezes nas finais e as ganham. Real-Liverpool será mais equilibrado a esse nível. Logo, pela lógica, ganha o Liverpool, que tem melhor coletivo. E o jogo não é no Bernabéu."

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