"Hoje não se discute o jogo em si e, enquanto isso, os Felix são amarrados pelos Simeones da vida. Arranjem-se novas fórmulas ou as pessoas vão continuar a mudar de canal.
Esta semana, as transmissões televisivas dos jogos Sporting-Paços e Benfica-Vilafranquense perderam, nas audiências de televisão. Sim, mesmo o jogo do Benfica, tradicional rolo compressor de audiências televisivas, perdeu esse duelo com o que quer que fosse que estivesse a dar no canal que ganhou. O facto de a equipa encarnada ter chegado facilmente a uma vantagem de 3-0, contra um adversário frágil, ajudou, claro, mas é, ainda assim, um sinal.
Um sinal de que o futebol, assim como está, tende a ser menos interessante, mesmo para espectador de sofá, quando já não tem gente nas bancadas, em grande parte das Ligas.
O mesmo espectador de sofá que se tornou alfa e omega de quem manda no jogo, deixou de ter pachorra. O adepto de sofá que, nos últimos anos, terá sido endeusado pela «indústria» do futebol, principal foco de todas as opções estratégicas à volta deste desporto, desde o horário dos jogos (definido de acordo com os hábitos de espectador de sofá, e não do espectador da bancada, de acordo com o mapa de planeamento de programação das televisões), o VAR (em casa é que aparecem as linhas do fora do jogo, no estádio, fica tudo espreitar as televisões dos camarotes e corredores, ao fundo - e atualmente nem isso, a não ser nos bancos de suplentes, tudo a procurar a verdade desportiva num ecrã de um telemóvel, enquanto o jogo para cinco minutos, mesmo ali a pedir zapping a quem está... no sofá), à da carga de competições e jogos (quanto mais futebol em prime time, de preferência todos os dias da semana, melhor).
Como acontece numa consola, é só ligar a televisão e eles desatam a correr.
Problema: mal se mexem.
Olhando para o Futebol em 2020, depois de uma paragem forçada pelo confinamento, sem tempo para os jogadores recuperarem dessa paragem de meses, com uma pré-época de duas semanas e, desde o final do verão, esta absurda voragem de jogos de três em três dias... o que fica são equipas de rastos. E ainda estamos em dezembro. Se a isto juntarmos estádios vazios como regra, é tudo mau.
E o pessoal desliga, sim.
Há quanto tempo não vê um grande jogo de bola? Como pedia o outro: «Diga-me um, um!»
Este fim de semana então foi emblemático do pouco que se joga: Real-Atletico e United-City foram espetáculos pobres, forjados no cansaço precoce dos jogadores e noutro fator desencorajador que lhe está, creio, diretamente ligado: o medo.
As equipas não partem para o jogo. Ficam à espera do que ele dê.
Toda a gente joga com medo. Tudo a jogar no erro do adversário. Aqueles 56 passes curtos, para o lado e para trás, longe da área adversária. Que inclemente secador!
Os treinadores queixam-se que não têm tempo para treinar, os jogadores sentem-se de rastos, os espectadores ficam também saturados com o que veem, porque, mesmo quando o cartaz promete, o jogo depois, inevitavelmente, desilude.
Acho que, no subconsciente do adepto, seja qual for o clube, instala-se uma frustração intransponível: por um lado, não pode voltar aos estádios, com a agravante de perceber que há países em que sim, outros em que nem pensar, e não entende.
Depois, este cenário bate de frente, na minha opinião, com outros dois aspetos que moldam o futebol atual e não prometem nada de bom. Já se faziam sentir, estes fatores, antes da pandemia, mas agora tudo ficou ainda pior.
A crescente falta de paixão pelo jogo, da parte dos novos jogadores, e uma nova tipificação do jogo individual dos atletas, por outro.
Por partes.
Recentemente, um treinador da formação de um dos grandes clubes portugueses contou-me, espantado, que, numa segunda-feira, após um fim de semana de clássico em Espanha, ainda no tempo Messi vs Ronaldo, chegou ao primeiro treino da semana, e, entre os miúdos, só dois ou três tinham visto o jogo. Dezenas de outros jovens jogadores, que supostamente sonhavam em ser jogadores de futebol e deveriam ser apaixonados pelo jogo, não, não tinham visto. Alguns até responderam com um desconcertante: «Ah, houve um Barcelona-Real Madrid? Não sabia. Quem ganhou?»
Pergunto: para um jovem de 16 ou 17 anos, na antecâmara de subir a sénior num clube grande, o que foi mais importante, à hora do El Clasico, nesse fim de semana?
Ir ao Instagram? Jogar Playstation? Namorar? Dormir? Ir ao cinema?
A falta de nervo, o pouco adeptos que os jovens jogadores são, cada vez mais, é alarmante.
É que isso reflete uma ideia subjacente ao seu comportamento: querem ser jogadores, não porque amam o jogo - ou, loucura, o clube onde têm a sorte de jogar! - mas porque querem tão somente, tudo o que aquilo que o ser jogador profissional de um clube grande pode trazer: dinheiro e notoriedade. Nada a ver com o jogo, só com o ser jogador.
Entre a vaidade e um plano financeiro, a muitos destes jovens falta sentimento. E isto vai casar, na perfeição, com outra praga do futebol atual: a normalização absoluta dos sistemas táticos. Não há um jogador que faça uma finta. Ninguém improvisa nada.
Aos 7/8 anos já estão a ouvir, nos treinos, os misters a falar de tática. Tática!
Aos 7 ou 8 anos de idade! Devia ser proibido. Até aos 12, devia ser só jogar à bola mesmo. Tu és defesa, tu médio, tu avançado. A baliza é ali. E é tudo: joguem.
Hoje, olha-se para os jogos, e são todos a régua e esquadro. Ninguém improvisa. Não há outra malandrice que não seja com o intuito de enganar o árbitro: sacar um penálti, fazer falta sem ser apanhado, aprender a queimar tempo, simular uma lesão.
Mas faz lá uma finta... tá quieto. Deus nos livre de tentar qualquer coisa que possa levar a uma perda de bola. Problema: pode ser o lance que define o jogo, em bom. E, não menos importante: podia ser o lance que inspira. O que levaria à vontade de imitar, fazer melhor ainda, no olhar encantado de uma criança que estivesse a ver.
Uma pessoa vê as equipas, de topo ou não, e jogo transformou-se numa inevitável seca. Sim, uma pessoa muda de canal, fácil.
Não raras vezes, olhamos para os nomes dos jogadores e antecipamos espetáculo. Só que não. Sai mais um jogo que dá na televisão, mas depois perde para outra forma de entretenimento qualquer. Porque os últimos heróis do futebol, a sério, ou estão no fim das suas carreiras ou estão no Youtube ou no cemitério.
Quando acabarem Messi e CR7, vai ser pior. Porque, fora, talvez, Neymar, a nova geração de craques, está toda formatada ao futebol absolutamente asséptico, calculista, defensivo, seguro. Os Felix são amarrados pelos Simeones da vida.
Quando a paixão pelo jogo nasceu da vertigem, da malandrice do craque da nossa rua, que fazia fintas incríveis, do tipo de marcava mais golos, do artista do meio campo que distribuía jogo como um maestro conduz uma orquestra. Mas era quando marcar golos era o Santo Graal. Agora é só se der. O principal é não perder. Rouba-se a bola para a guardar, não para avançar com ela. Que seca. A ultima vez que alguém tratou de roubar a bola melhor que os outros, ainda foi para pegar nela, inventar espaços e sim, ir direito à baliza: foi o Barça de Guardiola. Era uma seca, exasperavam muitos, na altura.
Não. À luz do que se joga hoje, incluindo o City de Guardiola, aquilo era emocionante como uma montanha russa. Hoje é que é uma seca. Juntas Bernardo Silva, Aguero, De Bruyne, Mahrez e Sterling e tens o quê? Pouco.
E os exemplos continuam.
Quero é que apareça um treinador que revolucione isto: alguém que arranje uma tática que destrua esta malha fina do jogo entre linhas, como agora se diz, essa zona do campo que parece um campo minado, cuidado, cuidado aí.
Um treinador que arranje uma tática nova para, pasme-se: ganhar jogos sem ser no erro do adversário. Correr riscos, sim! Mas ir para cima do adversário, perdendo o medo.
Este futebol que temos, todo ele preso de movimentos, são onze coletes de força de cada lado. Ora isso, somando à falta de paixão de muitos dos novos craques, leva a um jogo chato. O futebol nunca foi tão mediático, tão bem pago, gerou tanto dinheiro... e foi tão aborrecido.
Maradona adorava jogar, queria sempre ter um novo truque na manga. Não ia para o campo e esperava para ver, não. Ia para ganhar. Bola para a frente, que esse é que é o sentido inicial do jogo.
O que temos hoje é medo. De errar, de arriscar um passe a rasgar, de rematar de longe ou de um lugar ou forma inesperada, de ser apanhado no contragolpe. Temos equipas em que os jogadores não têm, na sua maioria, nenhuma ligação afetiva ao clube, cidade ou adeptos. As equipas são trituradoras de talento. Tudo num cenário de exaustão precoce dos jogadores, faz antever uma longa e penosa temporada de maus espetáculos, que culminará com um Europeu de craques a desesperar por um mês de férias.
E, no entretanto, tudo como se nada tivesse mudado: todas as competições estão on. Prolongamento nos jogos da Taça, se for preciso. Taças da Liga a bombar. Seleções com calendários como se o futebol estivesse com tempo. Não está. Precisa de descansar mais. Precisa que os adeptos tenham saudades dele. Porque, depois do confinamento, o regresso do futebol desiludiu. E continua a desiludir.
Tal como a invenção do 4x4x2 renovou o espetáculo, arranjem-se novas fórmulas. As Academias que não se fechem em power points e medição de massa muscular dos miúdos, e os deixem jogar à bola. Essa coisa maravilhosa que é jogar à bola, por puro prazer, na idade em que isso é tudo. Porque, acredito, o melhor presente de Natal, para muitas crianças, continua a ser uma bola. Deixem-nos jogar à vontade e não comecem logo a dar cabo de tudo com os momentos do jogo, a basculação e o jogo entre linhas.
Porque senão, vai acabar por se perder a magia e a vontade dos miúdos que melhor brincam com a bola de serem jogadores. O futebol vai sobrar para aqueles que, tendo jeito, traçam, não poucas vezes por via dos pais, ou, pior, de empresários, um plano de investimento, que de desportivo nada tem.
O futebol está chato. Na tática, na atitude, no cansaço evidente dos jogadores, no excesso de competições, nas bancadas desertas... e agora também no enfado que tomou conta do adepto de sofá, em nome do qual foi erigido o edifício do futebol tal como ele é hoje.
Hoje, só se discutem penaltis, boatos sobre transferências, ligou-se a fábrica de polémicas que nada são, na verdade. E não se discute o que vai mal no jogo em si. E, à entrada para 2021, o jogo de futebol está doente. Não se joga nada. Normalizou-se as equipas encaixadas. Desencaixe-se as peças deste tetris de tédio, por favor. O futebol precisa que cuidem dele e voltem a torná-lo excitante. Um dia destes, as pessoas mudam mesmo todas de canal. E é uma pena, porque, ainda hoje, não encontro nenhum outro desporto mais apaixonante, na sua essência.
E mesmo para mim, à beira dos 50, uma bola ocupa sempre o primeiro lugar, numa carta ao Pai Natal."
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