"As tragédias são sempre gregas. Coitado do Aristófanes! Escreveu muitas comédias, mas ninguém fala em comédias gregas. Coitados dos trágicos alemães! Escreveram muitas tragédias, mas ninguém fala em tragédias germânicas. A única tragédia concebível é sempre grega. E como acontece normalmente com as tragédias, já se estava mesmo a ver onde é que isto ia dar. Sai o PAOK na rifa e os olhos saltam logo para o hipotético adversário no play-off, afastando a equipa grega como se fosse um mosquito incómodo a zumbir-nos aos ouvidos.
Os gregos antigos chamavam-lhe húbris e os heróis caíam fatalmente, tragicamente, nas suas armadilhas. Querer voar com asas de cera, coisas assim. E depois vinha a inevitável hecatombe. Não no sentido original. Hecatombe era o sacrifício de cem cabeças de gado que os gregos ofereciam aos deuses. Hoje é sinónimo de desastre, de catástrofe – outra palavra de origem grega que etimologicamente significa “virar para baixo”, virar subitamente o mundo de pernas para o ar – mas imagino que a direção do Benfica não se importaria de fazer uma hecatombe para que a catástrofe tivesse sido evitada e a nuvem da crise – outra vez os gregos – não tivesse ficado a pairar sobre o clube depois de a temível e caríssima esquadra troiana ter sido eliminada por pobres pescadores de Salónica.
Não acreditam em divindades? Eu também não, pero que las hay, las hay. Veja-se o cruel sentido de humor que gostam de exibir. De outra maneira, como explicar que o segundo golo do PAOK saísse das botas de Zivkovic? Depois de meses de negociações, o Benfica lá se conseguiu livrar do peso salarial e físico do sérvio, libertando espaço para os ordenados milionários das novas contratações. Estava-se mesmo a ver – é assim, repito, nas tragédias, está-se mesmo a ver – que aquele aparente ato de boa gestão e o suspiro de alívio coletivo nos gabinetes da SAD teriam consequências insuportáveis. E Zivkovic lá marcou o golo que Sófocles ou Ésquilo o teriam posto a marcar.
Logo após o jogo, Jorge Jesus apareceu aos jornalistas em tom menor, estranhamente calmo, reflexivo e merencório, a falar em coisas positivas, como se tivesse acabado de empatar um desimportante jogo de pré-época contra o Sacavenense. O discurso analítico, anti catastrofista, parecia paradoxalmente irreal, o discurso de um homem que, no meio dos escombros após um terramoto de 9.1 na escala de Richter, aponta para a casa que resistiu e diz que, apesar da desgraça, nem tudo é mau porque na primeira parte, antes do tremor de terra e da derrocada, até estava um belo dia de sol.
Talvez este seja o novo Jesus, o Jesus transfigurado pela sua experiência no deserto arábico e pela aventura no Brasil, um Jesus que não se ajoelha perante as catástrofes, que sacode o pó das vestes e segue para Famalicão ou para outra terra qualquer a fim de cumprir a missão a que se propôs. Se, por um lado, esta nova serenidade confunde o adepto que ao primeiro desaire range os dentes e grita como um condenado, por outro, torna-o mais cerebral e menos oito-ou-oitentista, trazendo-lhe à memória aquela velha frase do evangelho do próprio JJ: isto não é como começa, é como acaba.
Só que o adepto não tem maneira de ver o futuro. Não lhe foi concedido o privilégio dos áugures. (Para dizer a verdade, o adepto também raramente consegue ver o passado para lá do último resultado). E nem cinco golos em Famalicão chegam para o sossegar. A única esperança é a de que a tragédia grega tenha servido de lição. Afinal, para isso é que servem as tragédias."
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