"Nos Pensamentos, Pascal (1623-1662), matemático e físico e filósofo e teólogo, de ideias imorredoiras, afirmou: “o homem nada mais é do que um caniço, o mais frágil da natureza, mas um caniço pensante. Não é necessário que o universo inteiro se reúna, para massacrá-lo. Uma gota de água basta para matá-lo. Mas, se o universo um dia o eliminar, o homem continua mais nobre do que os elementos que o eliminaram, pois que sabe por que morre. Toda a nossa dignidade consiste, portanto, em pensar”. Alain Touraine acrescenta, a este propósito, na sua Crítica da Modernidade: “a história da modernidade é a história da dupla afirmação da razão e do sujeito”. Os filósofos do século XVIII (o século, por excelência, do racionalismo) converteram a Razão numa espécie de divindade, capaz de ler o universo todo e conduzi-lo à resolução das necessidades humanas mais instantes. É pela Razão, segundo a filosofia racionalista, que pode contemplar-se a Verdade. Mas o paradigma desta filosofia (também chamada “iluminista”) era a física de Newton. O corpo jazia rodeado por um ferrugento arame farpado de ideias e não passava de um objeto ao lado dos outros objectos. A tanto levou o racionalismo: ao corpo-objecto! A visão do corpo era simplesmente mecânica e relojoeira. O médico mais célebre do Iluminismo, La Mettrie (1709-1751) escreveu um livro, L´Homme-Machine (O Homem-Máquina) que faz do ser humano uma simples máquina, chegando ao extremo do mais dogmático mecanicismo, ateísmo e materialismo. Pascal, no entanto, que inventou a primeira máquina de calcular, que se conhece, com o seu espírito científico sempre temperado de filosofia e teologia, também deixou escrito algumas frases que ficaram célebres e onde o racionalismo se põe em questão: “O coração tem razões que a própria Razão desconhece”…
Max Weber identificou modernização com racionalização, dado que a modernização se expressa pela permanente e cada vez mais complexa racionalização da sociedade, mormente do conhecimento científico. Não é por isso de estranhar-se que numa sociedade que se julga solidamente científica prevaleçam o empirismo, o positivismo, o realismo, o materialismo e o célebre princípio marxista: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas é o seu ser social que determina a sua consciência”. Só que se num primeiro momento a Igreja Católica, em Portugal, se sentiu enfraquecida pela ausência de simpatia e de apoio dos diversos governos republicanos, o exercício intelectual e pastoral de Gonçalves Cerejeira (futuro Cardeal Patriarca de Lisboa e “lente” na Faculdade de Letras), entre os estudantes da Universidade de Coimbra; a criação do C.A.D.C. (Centro Académico de Democracia Cristã), que logo nas primeiras reuniões se impõe um “espírito” que nunca mais se havia de perder: o alheamento da política partidária, a preocupação da integral formação dos estudantes e, finalmente e ainda mais, uma disciplinada e consciente subordinação à autoridade da Igreja. Folheio, agora o livro Fátima e a Cultura Portuguesa (D. Quixote, Lisboa, 2018), da autoria do escritor e filósofo Miguel Real, onde pode ler-se: “Porém, a grande resposta da Igreja ao republicanismo foi dada (de um modo lateral às instituições e totalmente inesperado para a hierarquia) pela irrupção das Aparições de Fátima” (p. 84). E, duas páginas adiante, escreve Miguel Real: “Do ponto de vista do pensamento católico em Portugal, A Igreja e o Pensamento Contemporâneo (de Gonçalves Cerejeira) é um livro notável , operando o ponto de situação metafísico, teológico e epistemológico das relações entre a ciência e a religião, na Europa contemporânea”. De salientar o seguinte, no que à “formação física” diz respeito dos sócios do C.A.D.C.: foi, nesta organização académica, que se ergueu um ginásio e se organizaram cursos de ginástica, em espaço universitário. Mas… “não se tendo lançado na febre do desportismo” (Padre Luís Lopes de Melo, O Centro Académico de Democracia Cristã (História Breve), Coimbra, 1951, p. 12).
O mundo que o Iluminismo criou tem muito do que é seu transformado em clamorosas ruínas. Tenho a sensação, por vezes, que só leio coisas já ditas. Faltam-nos mestres. “Deus morreu” proclamou-o Nietzsche, num desespero incontido. Foucault, tão niilista como Nietzsche, garante que o homem morreu também. E, no entanto, para ele, o homem é uma invenção recente, não passa de um conceito filosófico que a modernidade inventou – afinal, uma criatura, com 200 ou 300 anos de vida! Resta-nos pensar sobre o vazio do homem desaparecido. Tem razão o Heidegger quando afirma que o homem é tão-só um ser-para-a-morte? Michel Foucault morreu de sida, num hospital parisiense, em 1984. E deixa-nos um legado de morte para todos os quadrantes da vida. Como estranhar que neste árido clima se escutem apelos a uma renovação do pensamento? Pois não é verdade que também há quem nos diga palavras donde sai um autêntico acorde… que nos deixa em êxtase? “Somos em grande medida habitados pela possibilidade de Deus”. Sem esquecer jamais que “a crença num conhecimento muito estável muitas vezes precipita-nos numa espécie de idolatria. A gente tem de perguntar-se sempre: o que é que me traz mais próximo de Deus? O saber ou o não saber? A procura de uma segurança a todo o custo ou a confiança esperançada numa amizade que amadurece?”. E este pensamento que nos deixa sentido, num mundo em crise de sentido? “Não há misericórdia sem excesso. Se queremos ser pessoas moderadas, se queremos ser apenas justos, se queremos fazer apenas o que está certo, seremos até boas pessoas, mas não conheceremos o Evangelho da Misericórdia. Porque o Evangelho da Misericórdia pede de nós um excesso de amor: que sejamos capazes de abraçar a vida ferida e que percebamos tudo sem necessidade de dizer muito”. José Tolentino Mendonça: é um dos meus autores preferidos. Com ele aprendo sempre que é possível ser feliz, feita a ressalva que não há felicidade sem transcendência! De facto, na obra do Cardeal Tolentino Mendonça, há uma Verdade para além da verdade histórica dos nossos anseios e dos nossos sonhos, que só pela transcendência se pode imaginar. E que tem sentido…
Na prosa poética de Jorge Valdano, os treinadores e os futebolistas avultam sempre como figuras de actualíssima projecção, muito oportuna nos dias que nos assistem: “O capitalismo já ocupa todos os espaços, também no futebol. Como o pragmatismo não se discute e o futebol não tem uma claque própria, aceitamos com resignação as palavras de Simeone: “O resultado não é o mais importante, é a única coisa”. Os treinadores têm o direito de o dizer, porque são os primeiros a sentir a guilhotina por um mau resultado. Mas a frase é uma falta de respeito pelo futebol enquanto fenómeno, “ópera dos pobres”, que provoca sobressaltos emocionais e estéticos e que eleva, em algumas ocasiões, jogadores e equipas a picos heróicos. Para Simeone, o resultado é uma questão de sobrevivência, mas se o futebol fascina é porque tem a ver com o orgulho, a identidade e a aspiração de grandeza. Numa só palavra, com a glória. Se o único critério social que mede o êxito é o dinheiro, não podemos estranhar que o único critério futebolístico que mede o sucesso seja o triunfo” (A Bola, 2020/8/15). De facto, “o capitalismo já ocupa todos os espaços, também no futebol”. Há muito tempo o senti. Por isso, respigando no que escrevi, pode encontrar-se: “E se o Desporto emerge tão-só como um dos subsistemas do sistema “capitalismo” ele não passa de simples mercadoria, à imagem do que se passa com o próprio corpo (…). No corpo, o que mais se consome e publicita são as suas qualidades físicas, morfológicas e sexuais. Prometem-se força física, ombros largos, cinturas finas, orgasmos tensos e intensos, como quem vende sabão, lixívia, ou outro produto deste jaez (…). O turvo presságio de Marx poderia aqui invocar-se: na sociedade capitalista, a prostituição da mulher acontece, lado a lado, com a prostituição generalizada do trabalhador. A reificação do corpo significa a reificação do trabalhador” (Algumas Teses sobre o Desporto, Compendium, Lisboa, 1999, p. 12). Mesmo o Ronaldo, o Messi e o Neymar… que ganham milhões, também para esconder a esmagadora maioria dos futebolistas profissionais que ganha “tostões”. Mas volto ao meu querido Amigo e Mestre, José Tolentino Mendonça, na revista do Expresso (2020/8/15): “Penso que uma forma de preparação decisiva, no nosso mundo incerto, é aquela que nos chega, através da capacidade de pensar”."
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