"Assistimos nos dias de hoje a vários discursos sobre o desporto consoante a sua proveniência. Mas estes discursos, venham de onde vierem, acabaram por se banalizar. E talvez a maior banalização a que assistimos é aquela que confere ao desporto um carácter formativo e educativo, impregnada de valores morais e éticos… produto de crenças que se encontram enraizadas na nossa sociedade.
Poderemos apontar essencialmente para a constatação quatro tipos fundamentais de discurso sobre o desporto:
1 – o discurso dos investigadores e especialistas em Ciências do Desporto;
2 – o discurso dos intervenientes directos no próprio sistema desportivo (os agentes desportivos – principalmente treinadores e jogadores);
3 – o discurso dos consumidores do espectáculo desportivo e dos receptores daquilo que é divulgado nos mass media desportivos;
4 – e, por fim, o próprio discurso destes últimos.
Os especialistas em Ciências do Desporto procuram causas do fenómeno – e dos fenómenos – desportivo, procuram explicações para o mesmo assim como tentam também elaborar prescrições no seu âmbito. São especialistas desde a Psicologia do Desporto à Metodologia de Treino, desde a Gestão Desportiva ao Alto Rendimento, desde a Sociologia do Desporto à Nutrição, desde a Pedagogia do Desporto à Ergonomia, desde a Traumatologia à Gestão da Formação Desportiva, desde a Ética Desportiva à Medicina Desportiva ou ao Direito do Desporto.
Investigam, procuram analisar, descrever e compreender as várias componentes do desporto, tentando por vezes também, dependendo das variáveis consideradas, predizer e até controlar algumas das mesmas, fundamentando as suas conclusões.
Investigam, procuram analisar, descrever e compreender o desporto na sua totalidade. Também aqui tanto encontramos a raposa como o ouriço de Arquíloco (século VII a. C.): "a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa importante". Uns vêem a árvore, outros vêem a floresta. Difícil é ver-se a árvore e a floresta. Mas tanto uns como outros têm como missão fundamental divulgar as suas conclusões.
E se em relação aos especialistas em Ciências do Desporto muita investigação é produzida e publicada, nomeadamente em termos de percepções sobre ética e sobre valores, encontram-se praticamente ausentes das investigações as perversidades no desporto (excepção talvez para os estudos sobre doping, agressão e violência) – não só a corrupção, mas também a morte súbita na prática desportiva, a morbilidade, o treino intensivo precoce, a fraude desportiva, o racismo e a xenofobia, o suicídio de desportistas ou o próprio terrorismo que se abate sobre os mesmos.
Investigam-se imensos parâmetros em Ciências do Desporto, mas o que é feito da sociomotricidade? E dos planos socio-afectivo e relacional?... Será mais importante investigar as virtudes e os valores do desporto do que os contra-valores do mesmo? Será mais relevante pesquisar sobre o espírito desportivo, sobre a ética, sobre a moral ou sobre valores nesta actividade do que pesquisar sobre as perversidades existentes no desporto?
O discurso dos agentes desportivos baseia-se nos resultados que alcançam ou não nas próprias provas, pouco justificando os métodos que utilizam, fazendo referência, no entanto, por vezes, ao espectáculo que produzem.
São discursos de circunstância.
São discursos sempre proferidos à frente de um painel cheio de logotipos de patrocinadores a fim de nos impulsionarem ao consumo daquelas marcas. Muitas vezes são discursos vazios de significado: “vamos deixar tudo em campo para ganhar” antes do jogo e “fizemos o melhor que pudemos” ou “fomos os melhores em campo” depois do jogo são os chavões mais utilizados – realçando muitas vezes neste último caso a vitória moral que não a efectiva. “Venho para trabalhar“ e “prometo dar tudo ao clube” são os clichés mais comuns das novas aquisições. Treinadores e jogadores apresentam um discurso corrompido pelo “killer instinct”, pelo “amor à camisola”, pela “verdade desportiva” e pelo “fair-play”. A obrigatoriedade das entrevistas de antevisão do jogo e as entrevistas rápidas no pós-jogo a isso obrigam.
Eduardo Galeano, em “Futebol: sol e sombra” (2006, Viana do Castelo: Livros de Areia) dá-nos um exemplo paradigmático:
”Antes do jogo, os cronistas formulam as suas perguntas desconcertantes: – Dispostos a ganhar?
E obtêm respostas assombrosas:
– Faremos tudo o que for possível para obter a vitória.”
Treinadores e jogadores, os principais sujeitos do desporto, ignoram muitas vezes no seu discurso as suas competências técnicas e tácticas, mas também as suas competências pedagógicas, éticas e deontológicas. É enorme a diferença de discurso entre um treinador dos escalões de formação e um treinador de uma equipa profissional… Disso não nos apercebemos porque os primeiros não são mediatizados, ao invés dos segundos. É enorme a diferença de discurso entre jogador amador e um profissional. Disso não nos apercebemos porque, como nos diz Galeano na mesma obra, o jogador “que tinha começado a jogar pelo prazer de jogar, nas ruas de terra batida nos subúrbios, joga agora nos estádios e tem a obrigação de ganhar ou ganhar.”
Não poderemos ignorar aqui também os dirigentes desportivos e os agentes de jogadores, apesar de não intervirem directamente no espectáculo desportivo.
São estes intervenientes directos no desporto os responsáveis pelas maiores e pelo maior número de perversidades – nunca abordadas nos seus discursos a não ser quando chegam à barra dos tribunais, desportivos ou cíveis. Poderemos apontar como (alguns) exemplos Ben Johnson, Marion Jones e Alberto Salazar (atletismo), Tonya Harding (patinagem artística), Marco Pantani e Lance Armstrong (ciclismo), Torres Baena (karate) e os dirigentes Bernard Tapie, Juan Antonio Samaranch, Michel Platini e Joseph Blatter.
(continua)"
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