"Em vez de nadadores-salvadores pensar em marchadores-salvadores: andam em solo firme e evitam pequenos desastres na cidade
Kundera e o campeão de judo
1. Milan Kundera o grande escritor checo, tem vários livros essenciais, um deles: A Insustentável Leveza do Ser.
Nesse livro, aparece o diálogo entre um homem e uma mulher, Franz e Sabina. Diz ele, Franz:
«Já não tens que ter medo de nada: agora tens-me a mim para te defender! Fui campeão de judo na minha juventude!»
Ao mesmo tempo que diz isso, ele levanta uma cadeira, com uma única mão: «Conseguiu endireitar o braço na vertical sem largar a cadeira». A mulher diz-lhe: «É bom saber que és tão forte!»
E tudo parece certo. Porém, o narrador diz ainda: «Mas, bem lá no fundo, acrescentou para si própria (Sabina): Franz é forte, mas a força dele está unicamente voltada para fora. Com as pessoas com quem vive, com aqueles que ama, é muito fraco».
Pensar no mundo tenso e violento de alguns países em que a força física é ainda essencial. E pensar nas democracias em que o espaço público é ainda um lugar seguro e tranquilo. Não precisas da força física para te defender, precisas de argumentos.
Força para fora e força para dentro
2. Pensar ainda nestas duas variantes: a força virada para fora e a força virada para dentro. Uma parte do mundo concentrada na criação de músculos visíveis; músculos que se transformam por vezes em paisagem.
- Vamos ver aqueles músculos - poderia dizer-se da mesma maneira que alguns turistas ou pessoas que vivem no interior, dizem: vamos ver o mar.
Pensar no corpo como uma paisagem. Uma película exterior.
Pois então, essa paisagem exterior anatómica: um corpo musculado aí está: a força está virada para fora.
Uma força virada para dentro, o que seria? Por exemplo: treinara musculatura da sensibilidade da inteligência. Mas não só.
Força virada para dentro, alguns outros exemplos: capacidade de concentração, capacidade para nao desistir etc. etc.
Um corpo exterior bem forte e bem musculado pode não se concentrar minimamente. Um corpo exterior forte bem musculado pode desistir à primeira derrota ou ao primeiro falhanço.
Força virada para dentro, força virada para fora.
Judo afectivo
3. Pensar, assim, numa espécie de judo afectivo que não derrube, pelo contrário: levante ou impeça que o outro caia. Golpes de mãos e pernas para impedir que o outro desfaleça.
Um judo que salve: que impeça tropeções, desequilíbrios e quedas para a frente e para trás.
Um judo que seja judo de primeiros socorros: indivíduos distribuídos pelas ruas para evitarem pequenos desastres, escorregadelas, etc. Por exemplo, pensamos no vaso que cai do último andar em direcção à cabeça desprevenida de alguém. E pensemos que cabeça, tronco e pernas da iminente vítima são afastados no último momento, pelo judoca salvador, dessa linha vertical e definitva que vem de cima com o vaso e que terminaria na morte certa. O Judoca urbano, judoca a civil espalhado pela cidade que utiliza a sua arte para impedir que o cidadão caia de forma errada e desastrosa.
Judocas, portanto, que são salvadores terrestres, funcionários do governo pagos para evitar pequenos desastres urbanos. Em suma, em vez de nadadores salvadores pensar em marchadores-salvadores: andam em solo firma e evitam, entre muitas outras cosias, que a senhorita de setenta anos escorregue e caia no passeio.
O anúncio que assusta: Vem aí o esqui
4. Uma amigo fala-me das maravilhas do esqui. E agora que se aproxima o inverno, ele prepara já o equipamento.
Lembro-me logo da frase de Erma Bombeck, escritora americana e humorista que propôs para o sue próprio epitáfio: «Eu bem te tinha dito que estava docente». Pois bem, sobre esqui ela disse uma vez, de uma forma que parece sensata, que «não se deviam praticar desportos que têm ambulâncias nos sopés das montanhas».
E quando uma vez perguntaram ao autor americano Corey Ford, se gostava de esquiar, ele respondeu:
«Esquiar? Porquê partir as pernas com 40 graus abaixo de zero quando as podemos partir nas escadas lá em casa?»
Portanto, se alguém o convidar para esquiar, aplique-lhe no mínimo um golpe de judo. Afectivo ou não."
Gonçalo M. Tavares, in A Bola
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