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terça-feira, 27 de março de 2018

Uma relação íntima com o golo...

"Arsénio não era alto mas foi enorme. Tinha nele uma potência reservada que explodia em trovões chutados com violência e precisão. Um dia fez seis no Estoril. E fez quatro nas Antas, no dia da inauguração.

Uma vez, em Fevereiro de 1951, o Benfica foi ao Estoril, ao Campo da Amoreira, ganhar por 7-0. Convenhamos que, nesse tempo, o Benfica ganhava com mais frequência por 7-0 do que hoje. Mas não deixava de ser aquilo que podemos classificar de uma cabazada das valentes.
Mas esse jogo teve algo de especial. Uma espécie de outro jogo dentro do jogo. O jogo de um homem contra as balizas e contra o tempo. Aliado da bola e da sua ânsia absoluta pelo golo.
Falo de Arsénio.
Fala-se pouco de Arsénio e é um injustiça.
Arsénio foi grande. Ou melhor: foi enorme.
Nessa tarde de Fevereiro ventou com força. O vento furioso de Arsénio! Cinco-golos-cinco! Como nos cartazes das touradas: e só começou depois da meia hora - 32 minutos. Depois 48, 49, 59 e 84.
Só que, mais tarde, os cinco-golos-cinco passaram a seis-golos-seis!
O inicialmente atribuído a José Águas (40 minutos) foi emendado: tinha sido Arsénio o seu autor.
A façanha agigantou-se.
Agora acrescente-se um pormaior, como diria o Carlos Pinhão: era o que faltava reduzir Arsénio ao dia em que se tornou uma tempestade na Amoreira, em Fevereiro de 1951.
Em 1951, já Arsénio Trindade Duarte tinha oito épocas de Benfica: chegou em 1943. Ainda ficaria até 1955, saindo para a CUF, do seu Barreiro natal (tinha jogado no Barreirense antes de trocar o encarnado às riscas brancas pelo encarnado por inteiro), para ir depois fazer umas perninhas ao Montijo e ao Cova da Piedade.
Foi aprendiz de serralheiro e vinha de cacilheiro para Lisboa.
Era um daqueles homens de ir sempre: ir pela vida mesmo que tivesse de caminhar contra a vida.
O golo!
falei acima da injustiça de atirar Arsénio para uma espécie de terceiro plano da história das grandes figuras do Benfica.
Vamos e venhamos: Arsénio é de primeiríssimo plano!
Assim mesmo, com ponto de exclamação.
Morreu cedo como morrem aqueles que os deuses preferem. Tinha 60 anos.
A morte não pode atirá-lo para o olvido.
Não era alto, Arsénio. Mas forte, de uma daquelas potências reservadas, quietas, à espera do momento de desferir o seu golpe.
Marcava golos atrás de golos: mais de 230 com a camisola do Benfica.
É muito golo...
Arsénio tinha o dom do golo, a empresa do remate fácil e certeiro.
Um dia foi às Antas: 28 de Maio de 1952.
28 de Maio é um dia sinistro na História de Portugal desde 1926!
Ainda assim, dia escolhido para a inauguração do estádio do FC Porto.
O Benfica foi convidado: os clubes tinham relações de amizade, laços de respeito, bem diferente do que acontece neste futebol de hoje, futebol da idade da pedra.
E o Benfica ganhou. Ou melhor, trovejou: oito-a-dois.
O Benfica a trovejar nas Antas, bancadas e relvado novinhos em folha, e Arsénio a relampejar por entre os trovões.
Golos de quem tem fome deles: quatro.
Dois anos antes fizera um decisivo, na final da Taça Latina, contra o Bordéus, o do empate (1-1) que obrigaria a dois prolongamentos até Julinho decidir que o troféu ficava em Portugal pela primeira e única vez.
Só por pura estultícia se pode menorizar a Taça Latina na História do Futebol. Ou por aquele desdém que nasce na falta de pudor.
Só por estultícia se pode menorizar Arsénio na História do Benfica.
Ele foi enorme, apesar do seu metro e setenta e um de altura.
Havia nele uma noção prática da baliza. E uma relação íntima com a bola que se afeiçoava aos seus pés como um cachorrinho abandonado à espera daquele momento em que, num golpe de magia simples, a transformava em golo..."

Afonso de Melo, in A Bola

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