"Foi a madrugada mais cruel da minha vida. Aquele telefonema acordou-me, não sei se sonhava, decerto almejava. 'Passa-se qualquer coisa de grave com a Eusébio, a informação é segura'. foi o meu despertar. Ainda não batiam as sete, impunha-se ligar à Flora. Do outro lado da linha, a Sandra, filha mais nova, com um lacónico e molhado 'o pai faleceu', amarrotou-me emocionalmente. Houve ali raiva, fúria, danação.
Acordei Portugal, acordei o Mundo. O Eusébio partiu. Ainda em estado de choque, pensamentos em turbilhão. Acordei o Simões, acordei o Toni, precisava de mimo, de conforto, de partilha. Liguei ao Luís Filipe Vieira, não tardou a responder, senti-lhe lágrimas a embargarem uma voz irresoluta.
Espreitei, de forma veneranda, um texto que havia escrito. 'Era hipnose, era rajada, era batuta, era sedução'. Era, era mesmo. Era passado, era o que eu não queria que fosse. O passado teve presente, o passado passava a ter só passado.
Foram vinte anos de convívio quase quotidiano. Muitas estórias, muitas confissões, muitas cumplicidades. Tantos momentos de aprazimento, de júbilo, de ledice. Outros de malogro, de angústia, de frustrações, mas sempre em sintonia. Centenas e centenas de refeições em conjunto, centenas e centenas de viagens curtas ou longas, centenas e centenas de telefonemas. Só sabia, só sei de memória o número de Eusébio. Aqueles nove dígitos, vezes muitas, quando discados, valiam emoção, alvoroço, sentimento. Também amor.
O meu ídolo de infância despediu-se. Horas antes, não tantas, havia-me ligado a marcar um almoço na Tia Matilde. Um desejo do Eusébio estabelecia imperativo, ditame. Padrinho de um dos meus casamentos, celebrado no Minho, percebia-lhe carisma, mais ainda carisma magnético. Ter sido seu biógrafo constitui a honra suprema da minha vida profissional e da aptitude pela causa bonita da bola.
Agora, agora mesmo, acabo de receber um texto de Cristiano Ronaldo. 'Eusébio é um figura emblemática, não só de todo um País, mas também do Futebol mundial, com quem tive a felicidade, honra e prazer de conviver; é uma referência e uma lenda que perdurará para a eternidade'. Há dois anos, quando atingiu a condição de septuagenário, organizei-lhe uma festa, na sua Luz, tal como havia feito em ocasiões anteriores. Disse 'Eusébio tem setenta anos? É porque está ainda mais próximo da imortalidade'. Estava mesmo. Agora, como nenhum outro, como nenhum jamais, diviniza a mais portuguesa das palavras, a palavra saudade."
João Malheiro, in O Benfica
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