"Certa vez, em Parma, dois jogadores que haviam passado pelo Benfica (Paulo Sousa e Rui Costa) estiveram frente a frente. A exibição do 10 foi inesquecível. Eu vi ! Talvez um dos melhores jogos da sua vida. Os Italianos chamaram-lhe 'Sua Exc.ª Rui Costa, o Magnífico !'... Passam agora 13 anos...
No dia seguinte o 'Corriere dello Sport' escreveu na sua primeira página: 'Rui Costa divino'. Por mim, peço desculpa ao Mário de Carvalho por lhe roubar o título do seu livro mais famoso, mas vinha a propósito, não sairia mesmo mais a propósito se fosse encomendado.
Dirão os picuinhas das factualidades que o jogo não foi à tarde, foi à noite, e que isso desmente, portanto, a realidade da imagem. Eu digo: neste caso, nesta caso concreto, primeiro vem a imagem e só depois os factos!
Há dias (ou noites) assim, é um dos privilégios da profissão. No estádio Ennio Tardini, em Parma, foram precisos todos os adjectivos tal foi a qualidade da exibição de Rui Costa. Dir-se-ia que a perfeição do seu futebol foi aumentando a um ritmo insustentável, duplicando-se para aí de quinze em quinze minutos.
Fui a Parma, dessa vez, para ver o confronto entre portugueses. Dois antigos jogadores do Benfica: Rui Costa de um lado, Paulo Sousa do outro. Mas, no confronto entre Parma e Fiorentina, só foi possível ver Rui Costa - o 10.
Naquela noite do Ennio Tardini ele fez tudo, mas tudo! E continuaria a fazer tudo o que lhe fosse exigido ou lhe desse na real gana, nem que nesse tudo estivesse incluída a obrigação de apontar um penálti com uma bola de ping-pong ou um livre directo com uma ameixa raínha-cláudia. É um exagero, obviamente. Mas o exagero não é meu, é dele. Foi ele que exagerou na qualidade de oitenta e cinco minutos fantásticos, inesquecíveis.
'Sua Majestade, o futebol'
Para os que julgam que tudo isto não passa de um laivo serôdio de um patriotismo saloio, eis as palavras dos outros que defendem aquilo que aqui fica escrito. Aliás: dêem-se simplesmente ao trabalho de contar quantas vezes por mês, ou até mesmo por trimestre é que os avaros jornalistas da 'Gazzeta dello Sport' se dão ao luxo de atribuir a nota de 8,5 nas apreciações individuais dos jogadores do seu Campeonato. Garanto-vos: contam-se pelos dedos de uma mão. O nosso camarada Alessandro Calò, escreveu assim do Rui: «Dos seus pés sai sempre qualquer coisa de importante. Jogou como um 'fuoriclasse' e matou o jogo. (...) A diferença entre as duas equipas foi feita por um Rui Costa de trato imperial. Joga por todo o campo, é insuperável nas coberturas e impossível de parar nas suas arrancadas». Continuam ainda a pensar que é exagero? Pois há mais: «O númerp 10 'viola' sai do meio-campo com a bola controlada e cabeça alta tal como fazia Cruyff. (...) Como mereceu a 'standing ovation' do desportivíssimo público do Ennio Tardini». Vêem? O seu treinador da altura, Giovanni Trapattoni, outra figura querida da história do Benfica, também não lhe poupou elogios na conferência de Imprensa que se seguiu ao jogo: «Rui Costa foi estrepitoso! Superlativo! Foi o melhor em tudo». Nem Massimo Basile, do 'Corrierer dello Sport: «O seu primeiro tempo foi grandioso. O segundo tempo fantástico. (...) É evidente que se diverte. E fez dois golos com a arte dos grandíssimos». Nem Alberto Poverosi, do mesmo 'Corriere dello Sport, que iniciou a sua crónica desta forma emocionada : «Quando, no minuto 40 do segundo tempo de uma partida histórica, Giovanni Trapatoni chamou Rui Costa, todo o Tardini se pôs de pé e acompanhou com aplausos intermináveis a saída de campo de Sua Majestade, o futebol !». Pier Paulo Catosi, da RAI, chamou-lhe «Sua Exc,ª Rui Costa, o Magnífico!» E mais e mais ainda. Tanto cujas transcrições se tornariam fastidiosas. Eis porque o principal na exibição de Rui Costa foi a imagem. A imagem forte de um artista em noite de dominar o palco e transformar os outros actores em meros figurantes. Poucas vezes escrevi sobre um jogo em que um só jogador invadisse a cena com a arte de Lawrence Olivier ou Sarah Bernhardt em noite de estreia memorável. E, se calhar, em momentos como esses, as crónicas têm que começar pelo fim, pelo minuto em que o artista sai do palco envolvido nos aplausos da sua glória. Em Parma, as duas equipas entraram em campo ao som dos acordes da Marcha Triunfal da Aída, de Verdi. Escrevi, então, que Rui Costa tinha merecido sair de campo ao som da mesma marcha triunfal. É algo que Parma fica a dever-lhe para sempre. Porque o que ele fez no relvado do Ennio Tardini dificilmente se repete."
Afonso de Melo, in O Benfica
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