"Uma das variadíssimas coisas que me emocionam sempre no Estádio da Luz (e, em dia de jogo, sinto quase tantas emoções quanto o elenco da Anatomia de Grey durante uma operação à vesícula) é o facto de um consócio meu considerar relevante levar para o estádio uma enorme tarja com o rosto de um dos fundadores do Benfica. Talvez o conceito de sofisticação ditasse que fosse mais apropriada a imagem de um jogos jogadores 'encarnados' em campo. Mas, por outro lado, é inegável que a opção escolhida tem a vantagem de, caso não haja nenhum imprevisto de última hora, Cosme Damião já não vir a mudar de clube. Seja como for, a imagem que essa tarja proporciona - a de Cosme Damião olhando o relvado, as bancadas, os jogadores, os adeptos, os adversários, os dirigentes - presta-se a uma reflexão mística: perante tudo isto, o que estará ele a pensar?
Este exercício de imaginação não se torna assim tão esotérico, uma vez concluída a leitura da biografia de Cosme Damião, assinada por Ricardo Serrano (Editorial Zebra). Eis uma passagem muito esclarecedora sobre a natureza do nosso clube: 'A certa altura, Artur José Pereira é carregado de forma violenta por um adversário galego. Arrependido da entrada, o jogador espanhol dirige-se ao jogador português para o ajudar a levantar. Artur José Pereira (compreensivelmente magoado e no calor do jogo) responde com algumas injúrias na linguagem fluente do bom futebol, e com tal intensidade que feriu os castos ouvidos de algumas senhoritas que se encontravam perto do local da ocorrência. Cosme Damião, zangado com a atitude menos correcta do seu jogador, expulsa-o de campo, obrigando-o a recolher aos balneários. Para vincar o desagrado pela acção pouco correcta do seu médio, fechou-o no quarto de hotel justamente na altura em que, a convite do Real Clube da Corunha, se realizava um banquete de homenagem à equipa benfiquista." (pp. 87-88).
E outra: 'Menos de dois meses depois, o Benfica receberia uma das melhores equipas estrangeiras que passaram por Portugal nessa década: os escoceses profissionais do Third Larnack. Em jogo apitado por Cosme Damião (provavelmente por estar ainda magoado), o Benfica perde por 4-1." (pp, 97-98).
Quando uma instituição se encontra numa encruzilhada - desportiva, financeira, ética -, há uma boa alternativa a painéis de comentadores e a sondagens junto de notáveis do clube. Essa alternativa é perguntar aos fundadores. Testemunhar, ainda que de forma indirecta, a vida de Cosme Damião é muito esclarecedor, não só do ponto de vista de identidade do nosso clube, mas também no que diz respeito ao questionamento dos nossos próprios valores pessoais.
Há muitos benfiquistas, ainda para mais numa altura em que se aproximam eleições, que pensam poder vir a influenciar os destinos do clube.
Mas, bem vistas as coisas, é muito mais provável que seja o Benfica, a sua história e os seus valores, a influenciar o nosso destino pessoal."
Miguel Góis, in Mística
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