"O Criador é submisso. O Criado obedece. O Criado ladra quando o Palhaço manda ladrar. O Criado é sinistro: cola-se às sombras dos túneis de onde surge para insultar e agredir. Os túneis são um vício: têm recantos escuros, e humidade, e visco. Eles gostam de túneis: sentem-se bem em lugares onde passam despercebidos e atacam pela calada; lugares onde não há testemunhas das suas acções cobardes. Eles são como fungos: a sua violência começa por ser silenciosa, mas espalha-se à maneira dos cancros. Eles entranharam-na como uma doença. A violência está-lhes no sangue, o insulto vulgarizou-se como um hábito quotidiano. É essa a sua natureza ignóbil. Invertebrados como o Criado foram amamentados a lodo e a fel. São seres inchados e adiposos: chouriços de pus. De gente têm pouco: ou nada.
O Criado é capaz de se arrastar nu pelas ruelas de Mafamude e de Crestuma, roçando no empedrado os joelhos ensanguentados, e gritando num desespero de ansiedade para que o levem a sério: «O Palhaço é Deus!» E é. Para ele é. Deus criador de todo o minúsculo e enviezado mundo que ele conhece. Para o Criador, o Palhaço é o génio acima de todos os génios. Por ele está disposto a tudo, menos a um gesto decente.
O Palhaço manda cuspir, ele cospe; o Palhaço manda vituperar, ele vitupera; o Palhaço manda escoicinhar, ele escoicinha. O Criador impacienta-se por ordens. A sua existência resume-se à vassalagem. É a ser espezinhado pelo Palhaço que o Criado se sente bem. Não quer ir para além da sua pequenez de verme. Quando, num túnel, pela milésima vez, ataca uma vítima desatenta com a boca cheia de palavrões e os cascos prontos para o coice, não pensa noutra coisa senão no reconhecimento do Palhaço. E, no recôndito do seu cérebro caliginoso, lembra-se: «Para a próxima venho de carro para o túnel. Posso atropelá-los como faz o Dono. É mesmo um génio!»"
Afonso de Melo, in O Benfica
http://cabelodoaimar.blogspot.com/2012/02/entrevista-marinho-neves.html
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