"Ao longo da corrente época, jogando melhor ou pior, evidenciando maior ou menor beleza plástica de jogo, mostrando maior ou menor segurança de processos, mais ou menos fulgor atlético, há algo que ninguém poderá apontar ao Benfica. Falo do empenho e da capacidade de sofrimento dos jogadores, do seu profissionalismo, da sua entrega, e do rigor com que defendem a camisola que vestem, aspectos que não são obviamente indissociáveis da capacidade de liderança do treinador, e da estrutura que o suporta. Pois foi precisamente aí, nesse conjunto de características, nessa raça e nessa mística tão nossa, que residiu o âmago da vitória do dérbi de sábado passado, a sexta consecutiva sobre o velho rival lisboeta.
Sabia-se que o Sporting vinha moralizado, e trazia mais argumentos do que noutras ocasiões do seu passado recente. Isso notou-se desde o primeiro instante, o que fez deste, um dérbi com muito mais disputa e muito maior incerteza do que outros. Tal reequilíbrio originou um jogo de enorme intensidade competitiva, disputado em poucos espaços, e apelando a factores que iam muito além da capacidade técnica ou táctica dos dois conjuntos. Exigia-se, à partida, um Benfica de luta, de grande coração, e de entrega total. Após a (exagerada) expulsão de Cardozo, essa necessidade foi levada aos limites.
De facto macaco e mangas arregaçadas
Num desafio à sua coragem, o Benfica saiu-se com distinção. Foi feliz por ter procurado, com uma alma inesgotável, essa mesma felicidade. Triunfou merecidamente, porque soube ser eficaz, mas também humilde e sofredor. Percebendo que não tinha a faca do jogo, soube enrijecer o queijo, tornando-o impenetrável, e alcançando um sucesso que pode ter importância vital no desenrolar do Campeonato.
Até ao momento da expulsão, a partida foi quase sempre pautada pelo equilíbrio, com o golo de Javi Garcia a determinar uma diferença tangencial que se aceitava. O Sporting podia ter marcado, o Benfica também dispusera de oportunidades flagrantes (uma das quais nos pés do próprio Cardozo), e tudo se encaminhava para, daí em diante, assistirmos a um natural ascendente territorial leonino em busca do empate, e a uma tentativa do Benfica em explorar os espaços que o adversário iria necessariamente libertar nas suas costas, à imagem e semelhança daquilo que acontece em tantos e tantos jogos de futebol.
Em razão da inferioridade numérica em que se viu colocado, o Benfica foi forçado a quase desistir de atacar. Com meia hora de jogo pela frente, e uma preciosa vantagem no marcador, os 'encarnados' vestiram o fato de macaco, deram as mãos, e fecharam as portas da baliza de Artur. As substituições foram extraordinariamente criteriosas, dotando a equipa de uma capacidade táctica que lhes permitiria resistir até final. A raça dos jogadores fez o resto. Apenas esses últimos trinta minutos, com menos um elemento em campo, podem ter deixado a ideia ilusória de um ascendente sportinguista que, até então, em bom rigor, nunca e verificou. Em momento algum o Sporting jogou mal, mas só dominou verdadeiramente o jogo quando se viu com mais um homem, e mesmo aí, sem criar particular perigo junto da baliza benfiquista (as melhores ocasiões, paradoxalmente, até haviam sido desperdiçadas antes).
Palmas para os nossos adeptos
É a segunda vez consecutiva (a outra foi aquando da última meia-final da Taça da Liga) que vemos o universo sportinguista sair da Luz feliz (aliviado?) por perder por poucos, e por conseguir discutir em dérbi até ao fim. Esse estado de espírito é a melhor homenagem que prestam ao nosso Clube, ilustrando afinal que o melhor Sporting (e este foi, devo dizer, o melhor dos sportingues que vi nos últimos anos), ainda não chega para um Benfica limitado nas suas unidades e nas suas forças.
Não é possível terminar um texto sobre o dérbi sem uma palavra para o público da Luz, que soube interpretar na perfeição o seu papel de décimo segundo (depois décimo primeiro) jogador, dispensando, em momentos cruciais, o apoio de que a equipa necessitava. O sofrimento que se vivia nas bancadas não dava para ondas mexicanas ou entusiasmos festivos,mas o factor da equipa sentir que os adeptos estavam com ela terá sido crucial para superar as dificuldades da fase final do jogo, quando os ponteiros relógio pareciam andar para trás.
E assim continuamos invictos.
O FOGO QUE OS QUEIMA
As responsabilidades do incêndio causado pelas claques sportinguistas nas bancadas do Estádio da Luz não podem deixar de ser endereçadas a quem, com atitudes mesquinhas, com declarações inoportunas, e com insinuações ligeiras, lançou a confusão e polémica sobre medidas de segurança absolutamente normais, cuja necessidade, diga-se, estes mesmos comportamentos agora evidenciaram.
A presença ostensiva de dirigentes do Sporting no local apenas contribuiu para sancionar tais atitudes criminosas, não sendo os comunicados posteriores mais do que uma mera fuga para a frente, num assunto onde sabem ter perdido, uma por uma, todas as razões. Este foi, aliás, um exemplo perfeito de como podem polémicas inúteis induzir actos de violência extremamente graves.
Javi Garcia (positivo)
Foi dele a noite do dérbi e, quando um dia mais tarde recordarmos este jogo, o mesmo terá nome próprio, e será 'o do golo do Javi Garcia'. Para além desse momento, que valeu os três pontos, o médio espanhol realizou uma extraordinária exibição, tornando-se numa das principais muralhas da resistência benfiquista até ao final. Creio que a selecção espanhola já não será grande demais para o nosso Javi, que, jogo após jogo, mostra talento, pujança e inteligência táctica como poucos na sua posição.
Dirigentes do Sporting (negativo)
Criaram o mito da 'jaula' (ou 'galinheiro', conforme as preferências), mas saíram dela chamuscados pelo fogo ateado no local, perante o seu próprio testemunho. Lançaram a polémica dos bilhetes, mas só nos seus sectores havia cadeiras vazias. Depois, em desespero, queixaram-se das condições, como se muitos de nós não conhecêssemos Alvalade. Bem pode dizer-se que, também fora do campo, o Sporting perdeu o dérbi, desperdiçando muito do respeito que os seus novos órgãos sociais pareciam merecer."
Luís Fialho, in O Benfica
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