"No final de cada jogo, Severino Varela apanhava o ‘ferry’ e regressava à sua amada Montevidéu.
Se houve um tempo em que os guarda-redes usavam bonés, para protegerem os olhos do sol do início da tarde que estava quase a pino, também houve uma era na qual os jogadores de campo gostavam de usar boinas. A razão também era simples: como as bolas eram cosidas em couro, havia uma parte na qual as costuras se destacavam e, muitas vezes, provocavam feridas nos crânios daqueles que usavam a cabeça com mais frequência. A proteção não era propriamente global, mas era eficiente e evitava feridas. Dos muitos que usaram, Severino Varela, interior-direito do Boca Juniors, foi provavelmente o maior. Ganhou a alcunha de La Boina Fantasma e não foi por acaso. O dia está fixado na parede da história do futebol argentino: 26 de setembro de 1943. Em campo e nas bancadas a rivalidade fervia como água aquecida a cem graus centígrados. Boca-River! Como diria o António Oliveira depois daquele golo fantástico ao Dínamo de Zagreb em Alvalade: «Quem viu, viu; quem não viu, não viu!». Quem alguma vez viu o palco frenético onde se representam essas peças de teatro futebolístico que são os confrontos entre Boca Juniors e River Plate, os homens do Barrio de La Boca, lambido pelas águas do Rio de La Plata, que andam com caixotes às costas, sempre à espera do desembarque de mais um navio, contra os milionários de Belgrano, o bairro que levou o nome do general Manuel José Joaquín del Sagrado Corazón de Jesús Belgrano, político, advogado e militar e, sobretudo, o homem que desenhou a bandeira da Argentina, nunca mais o esquecerá. Tal como nenhum argentino esqueceu esse momento único de 1943 quando um jornalista mais imaginativo inventou a frase «golazo del misterio».
Na verdade, o golo de Severino foi uma espécie de aparição, com um toque de divino porque ninguém estava mais a prestar atenção aos acontecimentos que se sucediam na grande-área do River Plate onde tudo parecia ter deixado de interessar aos viciados em adrenalina. Pois é aqui mesmo que eu quero chegar: Carlos Sosa tinha driblado dois adversários pela direita do ataque do Boca e atirado a bola para a área com uma força soberba e exagerada. Toda a gente viu como ela passou sobre as cabeças dos centrais do River, Pio Corcuera e Ricardo Varghi, e para lá do alcance do guarda-redes Lettieri. No fundo, todos os que enchiam o Estádio Monumental de Nuñez e que se haviam erguido em bicos de pés, convencidos de que um perigo infame rondava a baliza dos Millionários, voltaram a sentar-se porque a bola saiu pela linha de fundo. Ou não? É nesse preciso segundo que algo de fantasmagórico acontece. Severino Varela, voou como um pássaro azul de crista branca e, com a cabeça envolvida na sua boina basca, num golpe elegante, próprio de uma garça, chegou a tempo de a desviar para dentro da baliza. Um estertor quase elétrico tomou conta dos adeptos do Boca: o grito fez eco ao longo de toda a Avenida Presidente Figueroa Alcorta – «Se-ve-ri-no! Se-ve-ri-no! Se-ve-ri-no!».
Severino Varela Puente nasceu em Montevidéu no dia 14 de setembro de 1913. Jogou no Peñarol, como todos os grandes jogadores uruguaios, era absolutamente apaixonado pela sua cidade e só uma oferta especial o tiraria da margem norte do Rio de La Plata. Foi então que os dirigentes do Boca Juniors lhe puseram na frente u cheque em branco. Com nobreza, recusou: «No voy a cobrar lo que no sé si voy a merecer». Assinou mas com ordenado fixo. Para compensar, a boina era paga. Ou seja, era um adereço publicitário surgido muitos anos antes de o futebol e a publicidade se confundirem. No final desse jogo irrepetível, La Boina Fantasma fez o que sempre fazia: apanhou o ‘ferry’ e regressou a Montevidéu para trabalhar o resto da semana nas Usinas y Teléfonos del Estado. Depois, aos sábados, voltava a Buenos Aires para jogar outra vez pelo Boca. Só porque a Boina Branca nunca quis assinar um cheque em branco…"
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