"Este domingo de manhã cruzei-me, num semáforo de Lisboa, com um colega do meu grupo, desportista e jogador de fim-de-semana inveterado que só não é presença mais habitual por força de uma profissão com horários rotativos. Ultrapassada a surpresa e os carinhosos insultos da praxe, perguntei-lhe se podíamos contar com ele na próxima quinta-feira.
- Eh pá... não me apetece - respondeu.
Fiquei boquiaberto, admito. Pensei, inclusive, que não tivesse percebido bem, de tal forma que disparei, um pouco fora de tom, uma série de perguntas em catadupa antes que abrisse o sinal.
- Mas não estás bem? Passa-se alguma coisa? Estás doente?
- Não, nada disso - respondeu, já com o pé na embraiagem e sem qualquer dor, lamento ou cansaço aparente. - Não me apetece, só isso. Talvez na próxima semana.
Deixei-o ir, apesar da existência de outro semáforo um pouco mais à frente, onde poderíamos ter continuado a conversa, e permaneci ali parado durante alguns segundos - o tempo suficiente para ouvir uma sinfonia de buzinadelas e viajar no tempo, primeiro ao encontro de alguns amigos que, com os anos, também eles perderam a vontade de jogar, depois até 1853, rumo às páginas de Bartleby, O Escrivão.
Estou seguro de que os amantes de literatura conhecem e já citaram inúmeras vezes este personagem criado por Herman Melville, ainda assim, vou correr o risco de resumir. Conta a história de um advogado que contratou um novo escrivão de forma a influenciar positivamente os seus outros dois empregados, o excêntrico Turkey e o explosivo Nippers. Durante um curto período, Bartleby, dedicado e competente, parecia ter sido a escolha certa, capaz de responder a todos os pedidos, tanto de dia como de noite. Até que, ao terceiro dia, e sem qualquer justificação, se recusou a realizar uma tarefa, com um lacónico «preferia não o fazer». Expressão que passou a repetir vezes sem conta daí em diante, sem nunca se explicar ou exaltar.
Todos nós já fomos ou nos sentimos Bartleby, mesmo quando fazemos o que gostamos. Dias há em que me apetece tudo menos abrir um documento Word, hoje por exemplo, em que era capaz de elencar um sem número de actividades nas quais preferia estar debruçado, desde logo não fazer nada. Estou irritado, apesar de não parecer, mas, se não terminar o texto, irrito-me ainda mais. E falho um compromisso. Confesso, inclusive, que fico sempre com vontade de insultar (dar uma bolada, vá) quem saca daquelas frases de algibeira «quem corre por gosto não cansa» ou «escolhe uma profissão que gostes e nunca terás de trabalhar um dia na tua vida», esta última, atribuída a Confúcio, pensador e filósofo chinês que, dizem as más-línguas, nunca trabalhou.
Um cansaço ao qual não serão imunes os atletas de alta competição. Desconfio que, tal como a um jornalista ou a um escritor às vezes apeteça tudo menos escrever, dias haja em que um jogador de futebol profissional deseje tudo menos treinar e jogar - ainda que, tanto a leitores como adeptos, isto possa soar a heresia.
Trabalhar é duro, ganhe-se muito ou pouco, seja a nossa profissão o paraíso ou um inferno. O treino cansa. A repetição cansa. A rotina cansa. A perfeição cansa. A imperfeição cansa. O sucesso cansa. A falta de reconhecimento também. É natural e até saudável que, de quando em vez, o balão rebente ou esvazie. A ausência de vontade de trabalhar deveria ser um direito, tal como o direito ao trabalho. Consagrar na lei a possibilidade de, pelo menos uma, duas, três vezes por mês ou por ano, não sei, podermos dizer «não me apetece», «preferia não o fazer» ou meter uma baixa por «motivos de Bartleby».
Percebo tudo, menos que um jogador de fim-de-semana não tenha vontade de jogar à bola. Isso nunca percebi. Mas, estou certo, de que mais cedo ou mais tarde o meu dia há-de chegar."
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