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segunda-feira, 16 de maio de 2022

A corrupção desportiva e o problema da árvore dos metadados envenenada


"Vem isto a propósito do recente acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que declarou inconstitucionais duas normas da Lei de Metadado

Vamos lá tentar descomplicar o juridiquês - missão quase impossível - pois algum jargão técnico terei de usar neste tema, mas vou tentar que não seja exagerado ou excessivo.
Em primeiro lugar, falo-vos numa metáfora que existe no direito chamada: "teoria da árvore envenenada". Tal teoria surgiu nos tribunais norte-americanos e estabelece o entendimento de que uma vez obtida(s) prova(s) por meio ilícito, todas as demais provas que decorram da(s) primeira(s), conhecidas como provas por derivação, também serão consideradas ilícitas. Se o fruto da árvore está envenenado, os outros também não se podem comer.
Vem isto a propósito do recente acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que declarou inconstitucionais duas normas da Lei de Metadados que trata a conservação de dados de tráfego e localização das comunicações feitas, durante um ano, com a possível utilização, se necessário, na investigação criminal. Ou seja, tal lei obrigava os operadores de telecomunicações a guardarem as metainformações das comunicações eletrónicas. Traduzindo o juridiquês: tais metadados permitem saber e rastrear para quem ligamos ou mandamos mensagens de SMS, MMS ou correio eletrónico, qual o dia, a hora, a duração da chamada, o número de destino, as antenas que ativamos em tais operações, o IP do computador, etc.
Os Juízes do TC decidiram, assim, declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 4.º e 6.º da referida Lei que transpôs uma Diretiva Europeia relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas.
Ora, tal Diretiva já havia sido declarada inválida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A declaração de invalidade teve por fundamento a violação do princípio da proporcionalidade pela restrição que a Diretiva opera dos direitos ao respeito pela vida privada e familiar e à proteção de dados pessoais, consagrados nos artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
O nosso TC, em sentido semelhante, concorda que o armazenamento desses dados num Estado-Membro da União Europeia, põe em causa o direito de o visado controlar e auditar o tratamento dos dados a seu respeito, bem como a efetividade da garantia constitucional de fiscalização por uma autoridade administrativa independente.
Por outro lado, entendeu o TC que uma obrigação indiferenciada e generalizada de armazenamento de todos os dados de tráfego e localização relativos a todas as pessoas - que revelam a todo o momento aspetos da vida privada e familiar dos cidadãos, permitindo rastrear a localização do indivíduo todos os dias e ao longo do dia e identificar com quem contacta, a duração e a regularidade dessas comunicações -, restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa. Designadamente, por atingir sujeitos relativamente aos quais não há qualquer suspeita de atividade criminosa: abrangem-se as comunicações eletrónicas da quase totalidade da população, sem qualquer diferenciação, exceção ou ponderação face ao objetivo perseguido.
Acontece que tal declaração de inconstitucionalidade tem efeitos retroativos até à entrada em vigor da lei, isto é, em 2009. Nesse sentido, os nossos Tribunais poderão ser inundados por pedidos de nulidade de processos cujas condenações tenham sido baseadas essencialmente em prova obtida através de metadados. Através de um recurso extraordinário de revisão de sentença transitada em julgado, os condenados podem reagir contra clamorosos e intoleráveis erros judiciários ou casos de flagrante injustiça, fazendo prevalecer o princípio da justiça material sobre a segurança do direito e a força do caso julgado. Estes princípios essenciais do Estado de Direito cedem perante novos factos ou a verificação da existência de erros fundamentais de julgamento adequados a porem em causa a justiça da decisão.
Para além de tal "inundação", ainda temos o "terramoto" que várias centenas de investigações criminais irão sofrer, pela mesma razão dos "metadados envenenados" que falava no início desta crónica.
Ou seja, a decisão do TC é justificada, mas socialmente muito nefasta, provocando "inundações e terramotos" na justiça penal, podendo anular condenações ou tornar nulas investigações de crimes de corrupção ou fraude nas competições desportivas ou outros crimes relacionados com o desporto e o futebol."

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