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sábado, 2 de janeiro de 2021

Uma noite que parecia dia


"240 projectores orientados na direcção do relvado iluminaram uma festa gigantesca que terminou com um jogo entre Benfica e Flamengo (1-1). No meio de tanta alegria encarnada, os brasileiros saíram irritados por terem sofrido um golo fora-de-jogo a 2 minutos do fim

Sabem aqueles que têm a infinita paciência de ler estas minhas páginas há mais de dez anos que gosto particularmente de ir em busca de jogos já fugidos da memória que envolveram a equipa do Benfica ao longo dos tempos. Desta vez entretive-me na pesquisa de uma visita do Flamengo a Lisboa em Junho de 1958. Vinham os cariocas para uma festa. Uma festa de luz na Luz, já que se inaugurava o sistema de iluminação do estádio. Razão mais do que suficiente para que o orgulho encarnado inflasse como inflou.
Esperava-se uma enchente extraordinária.
Recordava-se que os encarnados nunca tinham conseguido bater os rubro-negros do Rio de Janeiro. Seria agora?
Vindos de França, onde tinham realizado o último encontro particular de uma digressão que os levara à Hungria e a Inglaterra, totalmente imbatíveis nos seis jogos realizados, os brasileiros chegaram ao aeroporto da Portela envoltos na habitual alegria que faz parte da sua idossincrasia. Tinham nomes sonantes para a altura, como Joubert, Décio, Carlinhos, Dequinha, Alfredinho e Luís Carlos, e um treinador pachola, de discurso simpático e correcto, Jaime de Almeida: 'Jogar contra o Benfica só pode ser, para nós, um autêntico prazer. Ainda por cima, porque nos sentimos em Lisboa como se estivéssemos em casa'. A imprensa portuguesa levou a bem estas palavras. Nada com um elogio para trazer ainda mais vida ao jogo do dia seguinte. Ou, melhor, da noite seguinte. Sob a luz mágica dos novos holofotes.

240 projectores e um offside
Ainda não seria desta vez que o Benfica haveria de bater o Flamengo. Aliás, a festa de amizade há tanto tempo programada acabou de forma feia, com os brasileiros a discutirem bravamente com o árbitro o golo que permitiu ao Benfica atingir o empate (1-1) a 2 minutos do fim.
Facto indesmentível e intocável: a exibição dos encarnados não foi das tais coisas. Talvez por causa da ansiedade de vencer um adversário até aí imbatido, talvez porquê faltasse ao conjunto o toque colectivo que se exige para que seja isso mesmo: um conjunto. É preciso acrescentar que o Flamengo estava desfalcado no seu onze titular: Joel, Dido, Zagallo e Moacyr estavam na Suécia, integrados na selecção brasileira que não tardaria a conquistar o seu primeiro título de campeã do mundo. Ainda assim, a linha defensiva carioca foi de uma ligeireza e de uma elasticidade notáveis, ao ponto de baralhar por completo a movimentação dos atacantes portugueses, sobretudo José Águas, que ficou perdido entre as torres adversárias.
Alegres e matreiros, os flamenguistas trataram de ensaboar a cabeça a Serra e a Coluna, os melhores do Benfica, que andavam por ali, campo fora, atrás deles com os bofes de fora, tamanho o descaramento das tabelinhas rápidas e precisas que iam sendo desenhadas a meio-campo.
O público, que era muito, ficou naturalmente desiludido.
A esperança de bater finalmente o Flamengo desvanecia-se, e mais ainda quando Henrique, um avançado poderoso, à europeia, marcou o golo que dava vantagem aos visitantes.
Com o passar do tempo, não se viam jeitos de alterar o resultado.
Verdade que, também como é seu costume, os brasileiros se preocupavam mais em divertir-se com a bola, em passes e repasses, do que propriamente em chutá-la à baliza de Costa Pereira, ainda assim protagonista de algumas defesas notáveis. Otto Glória, o brasileiro que estava sentado no banco dos portugueses, parecia ter sido apanhado desprevenido pela forma de actuar do opositor, com a infelicidade acrescida de não poder contar com dois dos seus mais lutadores elementos, Ângelo e Pegado, cuja ausência lhe esburacou o meio-campo.
Andavam as coisas por este caminho com o final do encontro cada vez mais próximo, quando Águas recebeu uma bola isolado frente ao keeper Fernando e repôs o empate. Festa nas bancadas, pois calro, mas confusão no relvado. Os brasileiros reclamaram fora-de-jogo, e as testemunhas presentes confirmaram, na sua maioria, a ilegalidade do golo benfiquista. Empurrão para cá e empurrão para lá, mas nada a fazer, a decisão estava tomada, o Benfica safava-se de uma derrota aborrecida em dia que deveria ser de festa. E foi. Porque, para lá do jogo, houve todo um espectáculo de luz e cor.
Procuro nos canhentos e encontro: Em tudo, foi uma festa 'à Benfica'! Multicolor, alegre, imponente, espectaular e rica de beleza. Tal como a luminosidade que brota de 240 projectores orientados para a tapete verde. O clube caprichou em delinear um programa variado, repleto de sugestão desportiva e que se documentou pela estafeta Chama do Benfica, cujos corredores passaram pelos locais onde existiram campos da colectividade, demonstrações de ginástica, todas impressionantes na harmonia e no ritmo, exposição campista e fecho com o jogo frente ao Flamengo'.
Foguetes estralejaram no ar.
Os brasileiros saíram irritados. Com razão, muito provavelmente. Mas, se calhar, naquele coite que parecia dia, o resultado do jogo nem era o mais importante..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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