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terça-feira, 20 de outubro de 2020

Um nome que soava à infabilidade dos anjos


"Ele esteve lá nos dias dos heróis. E esteve também naqueles dias em que não era preciso ser herói e apernas homem por inteiro. Não vale a pena dizerem-me que o Ângelo morreu. Seu muito bem que gente assim não morre nunca.

Dia 31 de Maio de 1961 - dia de heróis! Wankdorf: infelizmente, hoje em dia, é mais conhecido por causa de um centro comercial do que pelo bairro de Berna onde, em 1954, se deu o milagre da vitória da Alemanha sobre a Hungria na final do Campeonato do Mundo (3-2). Três a dois: resultado que se repetiu na final da Taça dos Campeões Europeus entre Benfica e Barcelona.
Ângelo estava lá. Recordo-me de o ouvir falar desse jogo naquela voz enrouquecida que parecia exigir-lhe esforços de garganta. Ângelo Martins: Ângelo Gaspar Martins, nascido no Porto em 19 de Abril de 1930, desaparecido desde mundo de vivos que cada vez mais acumula mortos no início da semana. Ângelo, calma. Sr. Ângelo. Não é sr. de sr. É de senhor e por extenso.
Benfica campeão da Europa: Ângelo campeão da Europa.
De corpo inteiro.
A pouco e pouco vamos ficando sem os heróis desse dias de heróis.
A aplicação notável dos catalães mal o jogo de Berna teve início obrigou os defesas do Benfica a desdobrarem-se nas funções que lhes competiam. Houve, desde logo, quem os desse como perdidos. Pudera! Kubala e Kocsis, Luisito Suárez, Czibor e Evaristo. Muito provavelmente a linha atacante mais forte e mais categorizada do mundo. Mas, de camisolas vermelhas e alma acesa, havia aquele reduto último do Benfica, a três, como fazia parte das tácticas de então, Germano com Ângelo e Mário João, depois Cruz e Neto ligeiramente mais à frente. O vendaval blaugrana soprava com a força dos ventos do destino.
Ângelo de olho em Kubala. Lásló Kubala Stecz, três anos anos mais velho do que ele, o húngaro dos dribles precisos, dos movimentos inteligentes, dos passes soberbos, chegara a Barcelona em 1951, já marcara quase 200 golos desde então. E também perdera a final de 1954. Ângelo, atento, conhecia-lhe as manhas. Firme como uma rocha. Ângelo não dobrava, não cedia. Kubala era apenas um nome, nem um monstro nem um fantasma. Depois de alguns minutos de menor acerto, tratou de a pôr na ordem.
Certa vez, não consigo precisar em que jornal, mas quase certamente no L'Équipe no dia que se seguiu à final dos campeões entre Benfica e Barcelona, li uma prosa extraordinária. Falava da forma como os encarnados se impuseram ao seu adversário: 'Os portugueses controlaram o fantástico ataque dos catalães à custa de uma defesa plena de elegância. Ao ritmo responderam com ritmo, à força responderam com força, à técnica responderam com técnica. Não houve um momento em que se deixassem cair na brutalidade ou no jogo violento'.
Ângelo e Kubala: um duelo dentro do jogo. Quantos se podiam dar ao luxo de dizer - eu defrontei Kubala e venci? Houve dois golos húngaros nesse combate de Berna: um de Kocsis e outro de Czibor. Kubala ficou em branco. Ângelo vencera-o com elegância. Ele, que todos viam como exemplo de abnegação, de coragem, de imponência física a despeito da figura franzina. Ah! Ângelo era de aço. Nada quebrava a sua vontade indomável.

Um ano mais tarde
Dia 2 de Maio de 1961 - dia de heróis!
Ângelo estava lá: era indispensável!
O mesmo Ângelo que derrubara Kubala do alto do plinto da sua estátua de jogador ímpar.
Tejada, Del Sol e Puskás, Di Stéfano e Gento. Outra linha avançada de magia. O Benfica derrotou o Real Madrid que fora cinco vences consecutivas campeão da Europa, por 5-3, e o resultado retumbou por toda a Europa.
O trio da retaguarda encarnada repetiu-se: Germano no meio, Ângelo e Mário João a seu lado. Um tudo-nada mais à frente, Cruz e Cavém.
Algo parecia repetir-se em relação a Berna: a forma como o Benfica se sujeitava aos golpes iniciais do adversário, esperando pela sua exibição de força de forma a contrariá-la com as armas que possuía. Ângelo no meio do sofrimento, dois golos de Puskás, a necessidade de ir na busca das forças que se costumam guardar no fundo da alma. A alma de Ângelo era do tamanho do mundo. Chegava e sobrava para o confronto inicial e, depois, para a hora em que seria necessário exigir a companhia em combate desses deuses do universo do futebol que não deixam cair os que por eles bradam com a voz sonora da categoria e da classe.
Houve quem quisesse comparar Ângelo a Santamaria, o credenciado defesa do Real. 'Ângelo é muito melhor, muito mais concreto, muito mais confiável', escreveu um jornalista holandês. Tinha razão.
Ângelo manteve-se mais três anos no Benfica. Somou 280 jogos. Confesso: estive sempre absolutamente convencido de que era imortal. Como Coluna e Eusébio, como Águas e Germano. Afirmo: Ângelo é imortal, como o são todos os outros. Nunca ninguém o poderá retirar da história nem da memória. Naqueles dias intensos de heróis, ele esteve lá. E em muitos dias em que não foi necessário ser herói e apenas homem, daqueles que partem, de quando em vez, para esse relvado infinito sobre o qual rodopiam os amantes apaixonados da bola, ele também esteve lá, por inteiro, porque era assim que sabia ser.
Não, não vale a pena dizerem que Ângelo morreu. Todos sabemos que isso é impossível. Sobretudo para quem tem um nome que recorda a infalibilidade dos anjos..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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