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terça-feira, 15 de setembro de 2020

O povo ergueu-se numa ovação agradecida


 "O Benfica irá iniciar o próximo campeonato nacional em Famalicão. A primeira vez que as duas equipas se enfrentaram no Minho para esta competição foi no dia 11 de Maio de 1947, no Campo do Freião. Vitória encarnada por 1-5!

Ficou o Benfica a saber que irá o campeonato em Famalicão, no campo daquela que terá sido, pelo menos na opinião deste que se assina, como a mais agradável de todas as equipas da época passada, pela qualidade do seu jogo, pelo atrevimento do seu treinador e dos seus jogadores, pela maneira como nunca se deixou amarrar ao medo de perder fosse em que campo fosse. Diga-se que, de certa forma, o Famalicão respeitou a sua história, que é antiga e bonita. Se continuará a fazê-lo na prova que está à beira de começar, já é outra história, mas não há motivos para pensar o contrário.
Ocasião boa para recordarmos o primeiro ano em que os minhotos subiram à divisão principal: 1946-47. E o jogo em que receberam os encarnados, em casa, no velho Campo do Freião, perante uma assistência como nunca se vira até então, com gente dependurada nas árvores e curiosos sentados nos muros vizinhos na esperança de vislumbrar nem que fosse um bocadinho do enorme acontecimento. Domingo: 11 de Maio de 1947. Anos sobre anos anos se passaram entretanto. O futebol não escolhe datas, mas relembra-as. Ou realembramo-nos nós delas. Não que temos a obrigação de o fazer enquanto houver quem quiser saber o que aconteceu na história dos seus clubes.
Sabiam os famalicenses do poder da linha avançada benfiquista: Espírito Santo, Arsénio, Vítor Baptista, Rogério e Claro. Defenderam-se com o seu guarda-redes de nome extraordinário, Sansão, homónimo daquele que tinha a força descomunal que lhe vinha do comprimento dos cabelos. Sansão seria herói, mas um herói triste. Herói batido no fim da contenda, embora intocável no seu orgulho. Dois artistas jogavam nessa equipa do Famalicão: o húngaro Szabo e o argentino Tellechea. Ambos viriam a ser treinadores fundamentais para o futebol português. Ah! Sim. Os famalicenses tinham o brilho das suas estrelas e não prescindiam delas.

Um equilíbrio surpreendente
A vitória do Benfica foi fácil, é preciso dizê-lo desde já para não alimentar especulações descabidas. No final das contas, o Sporting seria o campeão nacional, com mais 6 pontos do que o seu rival de Lisboa e o Famalicão acabaria por descer, remetido ao 13.º lugar da geral, à frente só da Sanjoanense. Aos 8 minutos de jogo do Campo do Freião, Arsénio, o grande Arsénio, saltou para responder ao centro bem medido de Claro e fazer, de cabeça, o primeiro golo da partida. Os da casa perceberam que estavam condenados. Os adeptos encarnados, que eram muitos e barulhentos, convenceram-se cedo da vitória. Mas isto não quer dizer que a competitividade tenha morrido por aí. Havia luta, havia vontade, havia gente capaz de movimentar o espectáculo e encantar quem tinha a sorte e o prazer de a ele assistir.
Cinco minutos. Cinco minutos apenas. Pires faz um passe sensacional para Álvaro Pereira, colocando a bola nas costas de Félix. Pereira correu. OU voou, se preferirem. Era um chamado. Ganhou na vontade e no esforço. No momento bem definido, chegou primeiro do que o guarda-redes Martins, que saíra ao seu encontro. Um grito espalhou-se pelo céu sem pássaros: Golo! Martins, Fernandes e Félix olhavam uns para os outros, desolados. O empate estava feito. Era preciso recomeçar tudo de novo. Como se o jogo ainda não tivesse começado.
Por momentos largos, e equilíbrio manteve-se. Surpreendente. Os rapazes de Famalicão acreditavam como nunca em si próprios, mostravam-se capazes de dominar determinados momentos do jogo, obrigavam o Benfica a depender esforços que não eram adivinháveis. O tempo passava. Mais depressa para os lisboetas, mais devagar para os minhotos. Há sempre vários concepções de tempo. Rogério e Armando lutam por uma bola na entrada da área do Famalicão; Vítor Baptista surge num repente e aplica um pontapé violento e colocado; Sansão estira-se, mas não pode fazer mais do que sentir as redes estremecerem atrás de si. Nova nuvem de bandeiras vermelhas se levanta. Dois minutos mais tarde, o mesmo Vítor Bapti recebe uma bola perfeita de Rogério: desta vez usa mais o jeito do que a força. O resultado é o mesmo: golo.
Entrar na segunda parte com dois golos de desvantagem abalou profundamente os alicerces da equipa da casa. Organizados, tranquilos, os jogadores do Benfica dominam, a partir daí, todas as operações. São mais fortes na defesa, no meio-campo e no ataque. Sobretudo no ataque. Os minutos escoam-se, os encarnados prometem, aqui e ali, mais golos. Cumprem a promessa aos 80 e aos 87 minutos, através de Rogério e de Espírito Santo. Não há forma de minimizar a goleada. Apesar disso, um aplauso agradecido, reconfortante, envolve os jogadores do Famalicão quando se despedem do seu público. Merecem-no. O povo, nas bancadas, não deixa em silêncio o seu esforço e a sua vontade. Ergue-se, de pé, para uma ovação sentida."

Afonso de Melo, in O Benfica

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