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terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Sem espinhas

"O processo penal, em termos teóricos, possui (deveria possuir) três fases. A primeira é a do inquérito, e a mesma deve ser atribuída, em termos de coordenação e domínio, ao Ministério Público, que é quem em Portugal exerce a acção penal. A segunda é a da instrução, e deveria ser uma fase totalmente coordenada e dominada pelo arguido, pois é esta que, em caso de acusação e subsequente pedido por parte do arguido dessa fase de instrução, vai apreciar se o mesmo arguido deve, ou não, ser submetido a julgamento. Por último, a terceira fase, que é a do julgamento.
Antigamente, a face-rainha era a do julgamento, mas com as notícias que saíram de um arguido confessar no inquérito e depois poder retractar-se em julgamento, não valendo a confissão, com as notícias que saíram de que outros meios de prova existentes em inquérito não valessem nada em julgamento, tudo isto originou que a legislação fosse alterada, vindo confirmar o que sempre defendi - quem legisla nesta matéria é a opinião pública. Nos dias que correm, a regra é outra, muito do que se diz no inquérito vai 'entalar' quem o disse!
Seja como for, a fase da instrução, na maioria dos processo, não serve de grande coisa, pois a atenção dada à mesma pelos justiceiros é quase nula. Mas neste caso do designado processo E-Toupeira, felizmente, não o foi!
Retira-se da decisão que existiu uma grande coragem de aplicar as coisas como deve ser e como deveria ser em todos os casos.
Já muitas vozes publicamente tinham indiciado a falta de fundamentação e de lógica, quanto mais de direito, da acusação. E isso acabou por ser notório no despacho de não pronúncia da Benfica SAD exarado pela dra. Ana Peres.
'Assim, e perante imputações vagas e insuficientes, os arguidos em causa não poderão refutar concretamente factos que não conhecem, e o tribunal não pode, em consequência, formar, nesta parte, uma convicção concreta sobre o objecto do processo', lê-se num excerto das 198 páginas da decisão do tribunal.
A verdade, meus senhores, é que cerca de 50% das acusações proferidas em Portugal são isso mesmo, vagas, insuficientes e descritoras de uma história que encaixa num, ou em mais, tipos legais de crime(s).
Mas interrogam-se todos: porque assim será? Porque, na verdade, tem mesmo de ser assim. O Ministério Público redige uma acusação baseada numa investigação policial, menos ou mais bem feita, consoante tantos factores em jogo, e faz à interpretação do que investigado e dos factos que apurou, construindo a sua história, que tem obrigatoriamente de encaixar numa previsão legal que pune isto ou aquilo.
Fá-lo também porque não esteve presente no lugar dos acontecimentos no tempo em que os mesmos ocorreram, e por isso tem de reconstruir à sua maneira o que se passou.
Um exemplo simples faz imediatamente perceber o que se quer dizer.
Quem tem dois filhos sabe muito bem como é difícil reconstruir uma história com base em factos já passados e pelo testemunho de ambos os filhos, para saber se quem começou a bater foi o irmão A, ou o irmão B.
Uns decidem a favor do irmão A, outros decidem a favor do irmão B, outros decidem contra os dois irmãos, e outros dizem que afinal foi o vizinho!
Ora, isto não é mais do que uma acusação decidida pelos pais! E foi o que aconteceu! Hoje em dia, para se ser acusado, basta estar-se lá!
Quando um dia vi numa televisão que, se o gabinete do presidente era ao lado do gabinete do seu assessor jurídico, então o presidente tinha de saber tudo, então percebi que estamos mesmo 'todos malucos'! Basta existirmos para sermos criminosos! A célebre frase de Descartes 'penso, logo existo' deve ser substituída no séc. XXI por outro: 'Existes, logo és criminoso!'
Para explicarmos ainda melhor o que vimos escrevendo, veja-se o seguinte, reproduzindo-se outra parte do que está escrito na decisão da juíza Ana Peres:
'Em sede de alegações, o d. magistrado do Ministério Público disse que, com esta 'relação' que o arguido Paulo Gonçalves mantinha com o arguido Júlio Loureiro, sendo este observador de árbitros - mas não na liga profissional, apenas nas camadas jovens -, sempre poderia no futuro, com as boas avaliações que agora fosse fazendo a esses árbitros, das camadas jovens, ter alguma influência (assim o compreendemos), quando passassem para a liga profissional, a ter uma boa influência a favor do SL Benfica.
Mas, como muito respeito, afigura-se-me que a criminalização destas condutas não visa e não pode visar um juízo de prognose tão desfasado, impõe uma conexão mais concreta entre a actuação de agentes desportivos, nessa veste e por causa dessa veste, que violem a verdade desportiva, a transparência do resultado'.
O que o Ministério Público defendeu neste caso e defende hoje em dia é que alguém pratica um crime antes de ser crime!
Cuidado com o que se faz na rua, pois, se hoje alguém sopra, amanhã pode vir a existir um vendaval que faz cair uma casa, que vai matar uma pessoa e que por isso transforma o sopro de hoje num hipotético crime de amanhã, sem termos ainda chegado ao amanhã!
Vejamos agora outro excerto quanto a quem afinal representa a pessoa colectiva que neste caso é a Benfica SAD.
'Quanto à delimitação de quem sejam os representantes da pessoa colectiva', ou que detenham a autoridade para, 'e que, em consequência, e por meio dos que ocupem uma posição de liderança, exercer o controlo da sua actividade, os seus actos possam fazer incorporar a pessoa colectiva em responsabilidade criminal', explicita o n.º 4 do referido art.º 11º que 'entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade'.
A acusação do Ministério Público quanto aos crimes que imputou à Benfica SAD partiu desse pressuposto: é funcionário, logo representa a SAD. Mas não pode nem deve ser assim!
Considerar-se dessa forma seria responsabilizar criminalmente uma empresa pela prática dos actos por parte do seu porteiro. Há algo que nunca ninguém explicou, nem interessa explicar. Responsabilidade civil é uma coisa, responsabilidade criminal é outra.
Se amanhã começarmos todos a responder pelo crime de dano quando batermos no carro da frente, aí é que a opinião pública irá logo virar o bico ao prego! Enquanto é com os outros, está tudo bem, mas quando nos chega - aí começa tudo a gritar! Veja-se o caso das coimas de quem não tinha aderido à caixa de postal electrónica! A lei já era antiga, mas como abrangeu muita gente e começaram todos a mandar vir, afinal não havia lei, mesmo havendo!
Desejo um excelente ano novo, e um desejo muito especial para todos do jornal O Benfica: bem hajam!"

Pragal Colaço, in O Benfica

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