"Sochi – Sobre Sochi, o céu da manhã estala de sol e eu fico olhando pela vidraça os grupos de russos e croatas que se vão juntando em redor de copos de cerveja para, daqui a pouco, tomarem o caminho do estádio em procissão tão religiosa como todas as procissões. Faço tempo para segui--los, desta vez atrás de uma Rússia que, de um momento para o outro deste Mundial, deixou que a sua alma se tornasse desmesurada como as estepes. E, subitânea, a despropósito, surge-me uma memória já muito antiga do rabo da Jodie Foster. Não, não é brincadeira; não, não é malicioso. Somos mais ou menos da mesma idade, eu e ela, e isto foi em 1974, éramos miúdos e não foi ao vivo, mas foi a cores.
Em 1974, quando coleccionava cromos do Mundial da Alemanha Ocidental, já sem Pelé no Brasil, mas ainda com Rivelino e Jairzinho, e aqueles mais difíceis como o Peter Lorimer, da Escócia, o Lato, da Polónia, ou o Sparwasser, da RDA (para compensar cheguei a ter sete Riveras, da Itália), eu vivia em Benavente e resolvemos formar uma equipa de futebol a sério, com números nas costas e tudo, números de pano vermelhos cosidos com desvelo de mãe nas camisolas brancas de ginástica aplicada. Cada um escolhia um número e um nome, eu era o Jairzinho, sempre quis ser o Jairzinho desde as memórias puídas de 1970, ninguém tinha o atrevimento de querer ser Pelé. E quis o 11, por uma contradição interna qualquer, um sentido primordial de lado esquerdo da vida, o 11 até era mais caro, havia que comprar dois algarismos, tal como o 10 que foi do Rechena, só podia ser do Rechena-das-Fintas, o melhor jogador de todos os meus tempos, talvez quase igual ao Pelé.
Em 1974, o verão era tão comprido como nunca mais voltou a ser.
Eu jogava na direita com o meu número esquerdo e imaginava que a menina do anúncio do Coppertone estava ali, fascinada com o meu jeito de Jairzinho sem cabelo de bola; vivia apaixonado pela menina com o cãozinho preto puxando-lhe o fato de banho, um bocadinho do rabo a ver-se-lhe branco na pele torrada, o seu ar espantado, as sardas nas bochechas. Ah!, como eu era intensamente sensível a sardas nas bochechas.
Muitos, muitos anos depois, conheci o Jairzinho e não fui capaz de lhe dizer que também tinha sido o Jairzinho com um 11 nas costas no lugar do 7. Acanhei-me.
Muitos, muitos anos depois, fiquei a saber que a menina do anúncio da Coppertone era a Jodie Foster antes de ser Jodie Foster e de toda a gente saber quem era a Jodie Foster.
Muitos, muitos anos depois, todo o universo morreu. O universo morre muito frequentemente.
Morreu a minha avó Manelas, a tomar chá na esplanada do Hotel Albatroz; morreu o sol que derretia o gelado de morango e pêssego da Santini; morreu o Sandokan desembainhando a cimitarra nas florestas de Mompracém, a Ilha-que-Desaparecia, das edições Romano Torres a oito escudos; morreu a cantilena que sabíamos de cor – “Do meio do gramado/ Vem a bola p’rá Tostão/ Tostão p’rá Rivelino/ Está formada a contorção/ Rivelino p’rá Pelé/ Olha aí olhó negão/ Olélé, olálá, ‘tão botando p’rá quebra’” – mesmo que não fizéssemos ideia do que era o diabo da contorção; morreram os cromos do Bonev da Bulgária, do Grabowski da Alemanha Ocidental, do Rep da Holanda, do Jairzinho que tinha deixado crescer o cabelo em forma de bola à volta da cabeça; morreu a senhora dos bolos com uma caixa vermelha na cabeça; morreu o jogo das caricas correndo como automóveis nas pistas desenhadas na areia à força de piparotes; morreram os infinitos meses do verão; morreu o miúdo que ficava corado, mudo, arregalando os olhos perdido no travesso encantamento das sardas da menina da Coppertone, num embaraço pateta de, por causa de um cãozinho preto, lhe ter visto uma nesga de rabo branco.
Nunca conheci a Jodie Foster. Ainda bem, se calhar. Ficaria acanhado, sem ser capaz de lhe dizer, “olha, sabes?, gostei de ti”."
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