"Moscovo é cidade triste para um dos grandes do futebol do Benfica, de Portugal e do mundo. Marcou a despedida de Humberto Coelho da selecção nacional com uma derrota por 0-5 frente à URSS, no estádio que tinha o nome de Lenine
Estou em Moscovo, sobre Moscovo escrevo. Vocês, que têm a infinita paciência de me ler por estas páginas já lá vai para quase dez anos (quem diria?), sabem que para mim o futebol é feito em medidas iguais de alegrias e tristezas e que não há grandes clubes nem grandes jogadores que não tenham sofrido derrotas homéricas, monumentais dignas de ópera.
Moscovo marcou um momento terrível para uma das maiores figuras da história do Benfica: Humberto Coelho.
Humberto é não apenas uma figura, um amigo, uma daquelas pessoas por quem tenho uma ternura e um respeito fundamentais. Foi seguramente, um dos melhores defesas centrais de todos os tempos e, por falar em tempos, um jogador adiante do seu tempo. A forma como se movimentava, saía com bola depois da recuperação, como empurrava os companheiros para a frente, sempre para diante, com a segurança de quem sabia proteger-lhe as costas, fez dele algo de diferente, de uma modernidade para além da modernidade, de uma inovação que, a princípio criou estranheza mais rapidamente se fez escola.
Um joelho tramou Humberto Coelho numa altura em que podia e devia ter dado ainda mais, não apenas ao Benfica, mas a todo o futebol, nós jornalistas, críticos, adeptos incluídos.
Este é um jogo tão mágico como ingrato.
E para Humberto Coelho foi profundamente ingrato.
27 de Abril de 1983
No dia 27 de Abril de 1983, Humberto Coelho estava precisamente aqui, em Moscovo. Portugal jogava, naquele que tinha o nome de Estádio Lenine, agora Luzhniki, e que recebe a final deste Campeonato do Mundo de 2018, organizado de forma estruturalmente intocável, frente à União Soviética um dos jogos da fase de apuramento para o Europeu de 1984, em França.
Serão muitos os que se lembram da história. De um momento que voltou a trazer aos portugueses orgulho na sua selecção como não tinham desde aquele Verão de 1966 em que Eusébio destronou Pelé do topo do futebol do mundo.
Portugal foi à fase desse Euro 84, chegou àquela meia-final maldita, perdida no prolongamento, mas Humberto, esse, o capitão, não esteve sobre o relvado do Velódromo de Mardelha.
Em Moscovo, no dia 27 de Abril do ano anterior, vestira pela última vez a camisola que tem ao peito as cinco quinas azuis da Batalha de Ourique.
Baltacha, Rodinov, Demianenko, Tcherenkov e Larionov destruíram a selecção portuguesa que recuperara Otto Glória numa daquelas esperanças sebastiânicas que costumam tomar-nos conta da alma, dos sentimentos e, por arrasto, dos comportamentos.
Os soviéticos não tiveram piedade de um Portugal atemorizado e desorganizado. Foram marcando golos até quase ao último dos minutos e continuariam a marcá-los se em vez de hora e meia o encontro tivesse duas ou três.
Pagariam a ousadia num Estádio da Luz a transbordar na tarde em que Chalana inventou um penálti para Jordão marcar e carregar connosco até à aventura de França, já sem Otto Glória, e com a estranha solução de ter, no banco, quatro treinadores, Cabrita, José Augusto, Toni e António Morais.
Portugal jogou, no Estádio Lenine, com uma defesa à base da do Benfica: Bento, Pietra, Humberto Coelho, António Bastos Lopes e o bracarense João Cardoso como que a destoar.
Foi com eles, mais Veloso e Álvaro, que Sven-Goran Eriksson, na altura ainda um rapazinho, construiu a base recuada de um Benfica que, no fim de muitos anos, voltou a uma final europeia, a da Taça UEFA, frente ao Anderlecht.
Humberto estava lá. Capitão de corpo inteiro.
Defesa que se recusava a ser apenas defesa, central de evitar e marcar golos, homem sempre de nunca quebrar.
Em Moscovo, disse adeus à selecção nacional.
Adeus injusto, penoso.
Se alguém não merecia ter sobre os ombros da carreira uma despedida com cinco golos sofridos era ele.
O joelho traiu Humberto Coelho.
Não o deixou ir a uma fase final de uma grande competição como merecia.
Mas é assim a injustiça deste jogo onde a bola continua a ser a mais mágica das senhoras das paixões."
Afonso de Melo, in O Benfica
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