"O futebol acontecia-me todos os dias. Com a cor laranja no horizonte, a bola a bailar com os pés, a fazer da terra pó, um campo de pequenas planícies e montes mínimos, irregular, portanto, com relva aqui e ali, e com as camisolas poeirentas também dos ídolos Ronaldo, Messi, Neymar.
O futebol acontecia-me todos os dias pelo canto do olho quando ia para casa, dentro de um carro com o ar condicionado no máximo para a humidade não me consumir.
E acontecia ao mesmo tempo que uma vaca pastava ali ao lado, os cães vadiavam e as crianças brincavam numa estrada demasiado ocupada e perigosa para quem conduz, quanto mais para quem faz dela recreio.
O futebol acontecia-me todos os fins de tarde no seu estado mais puro em Comoro… e perdia o brilho nas madrugadas de Díli.
Era aí que se transformava em tudo o resto: televisão, negócio, rivalidade, Real Madrid-Barcelona, FC Porto, Sporting e Benfica. E desconfortável. Não só pelo meu ridículo sofá, mas pela exigência de se acordar às 3, 4 ou 5 da manhã, estar 90 minutos em frente ao televisor (se fôssemos ver apenas um jogo), dormir de novo e ir trabalhar no dia seguinte, se a partida era ao domingo ou de Champions. Se não era, provavelmente, no dia seguinte, repetir-se-ia a coisa.
Tornava-se quase desesperante quando a programação não permitia estar cómodo e ver um jogo pelo televisor. Piorava, portanto, quando se tinha de fazer streaming, num sítio em que carregar um vídeo de três minutos do Youtube significava, por vezes, ter de ir fazer o jantar. E reparem que esta ideia de obrigação é propositada.
Que dizer quando, a juntar à madrugada, à humidade corrosiva (mesmo de noite!), aos 1MB de wi-fi que não chegam e obrigam a mudar para uma pen 3G, ainda se tem de vir para o alpendre para ver se o raio do satélite nos dá alguma paz durante 90 minutos.
O futebol das madrugadas de Timor-Leste era incómodo, desconfortável, mas tinha algo de valor inegável: terminava quando o árbitro apitava.
Para além da conversa ocasional no café durante uns poucos minutos, na manhã depois, o futebol das madrugadas era uma coisa sã no dia seguinte, não tinha um prolongamento inflamado nas redes sociais, porque, pura e simplesmente, era desperdiçar muito tempo a carregar um vídeo em que três pessoas berram e gesticulam e inquinam argumentos, quando esse tempo era necessário para se ver outros golos, outros campeonatos…ou fazer-se o jantar.
O futebol português acontecia-me todos os dias em Díli, Timor-Leste. Sem jornais impressos, apenas a ler este em que escrevo, sem programas de TV para ver de seguida.
A diferença horária, a velocidade de megabytes, e uma ou outra escolha pessoal eliminaram o ruído, a poluição, e deixaram o essencial.
Com todas as insónias causadas e dores de cabeça consequentes, foi o momento em que mais apreciei a nossa Liga nos últimos anos. Mesmo aqueles que procuravam saber o que achava referiam-se ao que se passava em campo.
E aí, no relvado, o futebol português tem beleza e ideias se as soubermos ver.
É aí, no relvado, também, um de dois sítios em que o futebol português é suportável.
O outro é bem longe daqui. É o mais longe que se puder."
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