"O populismo que confere a cada um a autoridade de médicos, geógrafos e jornalistas está a criar um espaço público de silos onde se repetem as mesmas ideias e os mesmos erros.
Reza o ditado que "contra factos não há argumentos." Este provérbio é mais um conselho do que uma observação, já que não me recordo de ter ganho qualquer debate com o brandir de um facto (e não foi por não tentar). Se à mesa do café os factos contam pouco, é sensato esperar que no tribunal da opinião pública mereçam mais respeito. Informação verificada e certificada por autoridade competente tem a legitimidade de se sobrepor a testemunhos parciais e subjectivos.
Factos são bens colectivos a defender. É portanto com justificado alarme que vemos nos meios de comunicação social, impressos e sobretudo digitais, um desprezo dos factos. Circulam factos ditos alternativos que são meias-verdades ou mesmo mentiras. Ainda há poucos dias, o Presidente Donald Trump contou a estória de que o General Pershing executou 49 líderes islâmicos com balas untadas a sangue de porco e que com este fetichista “fire and fury” reprimiu uma insurgência islâmica. O auto-proclamado facto é afinal uma perversa fantasia, mas, ainda assim, a estória é repetida e há quem nela acredite.
Apesar destes e doutros atentados à verdade, ninguém desdiz que factos existem e ninguém nega os seus méritos como juízes da vida pública. Ainda assim, a forma como decidimos no que acreditar está a mudar. Se antes recorríamos à autoridade de peritos para discriminar a verdade da mentira, hoje tomamos essa decisão com base na nossa intuição e na dos nossos pares.
A informação que nos chega em ecrãs de bolso, secretária ou sala está à vontade do freguês, grátis e instantânea, legível a cores, vibrante e acolhedora, com um ou outro pop-up. Quem desfruta da imensidão da busca Google, do Facebook ou da Wikipedia esquece que os factos são de difícil construção e verificação.
Era uma vez um mundo sem internet em que uma questão de medicina, geografia ou actualidade requeria consulta médica, visita à biblioteca ou a compra de um jornal. Hoje, com factos em excesso, não sabemos em que quais devemos acreditar. E a realidade acessível, o facto plausível, é sobretudo o que é partilhado dentro do grupo de pessoas com quem temos cumplicidades. Para alguns norte-americanos, esse alguém pode ser um Donald Trump, um homem branco zangado.
Neste novo mundo de informação incessante surge uma nova forma de política: a gestão da ignorância (para saber mais procure no Google ou na biblioteca, agnotologia). As tabaqueiras foram as primeiras a perceber que o seu “produto era a dúvida”. Era impossível demonstrar que o tabaco era saudável – porque efectivamente não é – mas era possível alimentar a dúvida de que a ligação entre tabaco e cancro não era directa ou definitivamente mortífera. O que serviu para vender cigarros também serve para negar o aquecimento global ou para questionar a legitimidade de um Presidente negro. A carreira política de Trump começou com uma pergunta que não procurava resposta: será que Barack Obama nasceu nos EUA? E perante estes convites à dúvida, deixamos para atrás a autoridade de factos, peritos ou bom senso para seguir os afectos, das identidades e das cumplicidades.
Nunca na história da humanidade o acesso à informação foi tão fácil, tão vasto, tão inclusivo e paradoxalmente a consequência disso é que substituímos uma esfera pública que valorizava o conhecimento por uma outra que fomenta a ignorância. A par da cacofonia dos factos contraditórios está a peculiar atitude de termos orgulho na nossa ignorância. Esta atitude recruta adeptos com o cinismo. Diz-nos que são tolos aqueles que acreditam em peritos; porque peritos são gente falível que se deixa comprar pelo poder. Proclama que o mundo é radicalmente incerto e que somos todos igualmente humildes perante a sua sublime complexidade. Acontece que não se vê melhor com os óculos da dúvida. O cinismo perante os peritos e os factos não nos protege da manipulação, pelo contrário, garante a vitória dos mercenários da dúvida.
O populismo que confere a cada um a autoridade de médicos, geógrafos e jornalistas está a criar um espaço público de silos onde se repetem as mesmas ideias e os mesmos erros. O que a opinião pública ganha em acirrada convicção perde em razão. Faz-nos falta um provérbio que dite “sem factos não há argumentos.”"
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