"O escritor Jorge de Sena, na obra 'Antigas e Novas Andanças do Demónio', tem um excelente conto titulado como 'Defesa e Justificação de um Ex-Criminoso de Guerra'. O interesse desse conto começa na amarga ironia do título. Há crimes que não prescrevem, não se é um ex-criminoso de guerra. Um crime de guerra é um crime que não permite atirar o passado do criminoso para as calendas do esquecimento.
Pode o criminoso relativizar o crime, pode o criminoso evocar o contexto do crime como atenuante ou gritar 'ad mauseam' que o crime prescreveu ou enviar os diligentes cães de fila silenciar a realidade.
Ainda assim, não deixará de ser um criminoso. Pode o dito criminoso puxar o brilho às vitórias, pode justificar o crime com o superior interesse da causa que defendia e, mesmo assim, não deixa de ser um criminoso. Pode o criminoso, com o passar dos anos, encontrar um qualquer Tribunal que, em nome da Norma e do Direito, finja fazer Justiça e não o condenar que, mesmo assim, não deixa de ser um criminoso. Não se é criminoso em função da consequência, do castigo, do acto. É-se criminoso porque praticou o crime. Pode o criminoso exibir a absolvição ou a anulação de uma sentença que lhe seja desfavorável que isso não o iliba de ser um criminoso. O criminoso que cumpre uma pena passa a ter a sua dívida saldada para com a sociedade, a não ser que seja um daqueles criminosos de que nos fala Jorge de Sena. Um criminoso que nunca paga pelo seu crime nunca deixa de ser um criminoso em dívida para com a sociedade - é como se fosse duplamente criminoso.
Podem vir as comendas, as ameaças, os encómios na imprensa, os títulos vistosos e as lavagens públicas de imagem. Pode vir, inclusivamente, a ordem suprema de silenciar as vozes que lhe recordam o crime. Pode vir tudo isso e o mais que se inventar que, ainda assim, um criminoso continua a ser um criminoso. As andanças do demónio não deixam de ser andanças do demónio, independentemente de serem novas ou antigas."
Pedro F. Ferreira, in O Benfica
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