"Em 1970 o Cagliari foi campeão de Itália. Tinha jogadores como Albertosi, Domenghini ou Gigi Riva, titulares da Itália vice-campeão do Mundo. Em Dezembro de 1971 receberam o Benfica: perderam por 1-4.
Porque a Itália tem estado na ordem do dia para o Benfica, vamos então continuar por lá mais uns tempos, desfiando estopa na roca das lembranças.
Duas deslocações seguidas a Turim, inéditas, para a meia-final e final da Liga Europa, levam-nos hoje a 1971. Agosto. A águia voara até à Sardenha, essa rochosa ilha do Mediterrâneo que sofreu as diatribes da História desde o tempo das Guerras Púnicas. Cagliari é uma província da Sardenha. E também uma cidade Capital da província e da ilha.
Em Cagliari há o Cagliari Calcio; não menosprezem este nome. Hoje em dia pode ter saído no oblívio de muitos, pode mesmo não fazer parte da memória dos mais novos. Mas hoje vamos até 1971! E, em 1970, o Cagliari fora campeão de Itália: o seu único título. E que jogadores tinha o Cagliari: o guarda-redes Albertosi, por exemplo, ou Dominghini, e sobretudo Gigi Riva, o menino bonito do futebol italiano, os três titulares da grande selecção de Itália que, no México, disputara e perdera a final do Campeonato do Mundo frente ao Brasil de Pelé, Tostão, Rivelino e Jairzinho.
Ah! Grande equipa esse Cagliari! Não tenham dúvidas. Batia-se com os grandes de Itália de igual para igual.
Foi com esse grande Cagliari que o Benfica mediu forças no Estádio Sant'Ellia no dia 21 de Agosto de 1971. Primeiro encontro de um digressão a Itália que compreendeu mais dois jogos, em Génova e Bérgamo. Falaremos deles depois.
Arte de um futebol renascentista
Rezam as crónicas que o Sant'Ellia recebeu mais de 50 mil pessoas verem o Benfica - o estádio era novo, tinha pouco mais de um ano. E podem ter a certeza de que essas 50 mil pessoas viram o Benfica, e o melhor Benfica. José Henrique; Malta da Silva, Humberto, Rui Rodrigues e Artur; Jaime Graça, Eusébio e Simões; Nené, Artur Jorge e Vítor Baptista. Um regalo de futebol ofensivo! Jogaram também Zeca e Adolfo. Do outro lado, além dos tais Albertosi, Domenghini e Gigi Riva, havia ainda Tomasini, Paletti, Niccolai, Cera e Macin, Greatti, Gori e Vitali.
Aos 6 minutos, os sardos, investidos de um orgulho muito seu, ganharam vantagem por Gori a passe de Riva. Festa! Alegria! O Cagliari teimava em ser grande, mesmo num jogo com tudo de amigável.
Mas o golo soltou os demónios benfiquistas. Simões foi crescendo, crescendo até se tornar imenso. Nessa altura já não era apenas o alacre ponta-esquerda que o Mundo aprendeu a conhecer. Era também um notável armador de jogo, um formidável organizador. Aos 33 minutos, Rui Rodrigues, lançou Vítor Baptista e o azougado setubalense não perdeu o ensejo do empate. Dois minutos depois, Eusébio emenda uma cabeçada de Artur Jorge e põe o Benfica na frente. Gela-se o entusiasmo dos ilhéus. Desfolha-se o futebol de ataque do Benfica. Rui Rodrigues é, também ele, um maravilhoso estratega: isola Nené em frente a Albertosi; o grande «keeper» italiano impede o golo imediato mas nada pode fazer contra a recarga de Artur Jorge. 3-1.
O Benfica manda. É poderoso. O seu futebol é perfeito na técnica super de todos os seus jogadores. O Cagliari podia ter sido campeão de Itália no ano anterior, mas é - à imagem do que foi a Juventus, campeã de Itália nos últimos três anos na eliminatória da Liga Europa - impotente perante a perfeição encarnada. Aos 70 minutos, a obra de arte: digna de Boticelli ou Donatello. Nené escapa-se pela direita, faz um centro largo, bem medido; Artur Jorge surge na área, de supetão, mas não remata, faz só que remata, simula e deixa seguir a bola para Eusébio. Eusébio é ainda Eusébio. Sê-lo-á por mais três anos até entrar definitivamente pelos anchos portões da Eternidade. Aplica um pontapé forte, colocado, irretocável. É golo e é poema! É golo e é pintura! Aplausos estremecem as bancadas. Uma rendição colectiva ao talento dos portugueses. Sardenha, a ilha, Cagliari, a sua capital, agradecem a presença do Benfica. Souberam merecê-la. Quem ama o futebol reconhece o brilho alvo das suas estrelas."
Afonso de Melo, in O Benfica
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