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sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ridi Pagliaccio

"Pela porta entreaberta da taberna, vinda da janela com tabuinhas da Laura do 14, entra a ordem cantada em italiano:

-Ridi Pagliaccio! La gente paga, e rider vuole qua!

Sentado à mesa da batota, o Palhaço ri. Um riso velho de dentes amarelos de cáries e de mentiras. É assim a vida do Palhaço.

-Bah! Sei ti forse un uom? Tu se' Pagliaccio!

O Palhaço não tem graça. Ri-se sozinho nesse riso de rio de vinho tinto e em seu redor, salivando, os rafeiros arfam e abanam as caudas numa alegria estúpida de quem só sabe viver com dono. O Palhaço não é cómico: é trágico. Bah! Se ao menos fosse um homem. É um Palhaço. Veste o fato e enfarinha a cara. O nariz já não é vermelho de ser nariz de palhaço; é vermelho de álcool e esclerose.

A Laura do 14, no intervalo da clientela, pendura à janela as ceroulas do seu Palhaço que vai chegar a casa pela madrugada, de hálito apodrecido e restos de vomitado nos cantos da boca mal desenhada num sorriso grotesco. O Palhaço chega a casa exactamente dez minutos depois de ter saído o último cliente: o guarda republicano. Se há uma virtude no Palhaço é essa: é tão previsível, o Palhaço.

Ao longo da noite, esgota-se o rio de vinho tinto. O Palhaço bebe como uma esponja. Solta gracejos labregos de palhaço muito pobre e espoja-se no seu próprio vómito.

-Ridi, Pagliaccio. E ognun applaudirà!

O Palhaço está velho. O Palhaço não controla as entranhas. O Palhaço é triste, muito triste. Já nem a morte salvará o Palhaço do ridículo.

O Palhaço não tem crédito. Já nem na taberna de rio de vinho tinto, o Palhaço tem crédito. O taberneiro quer fechar. A Laura do 14 já cerrou as tabuinhas, mandando o guarda republicano para a cama da mulher. Os rafeiros já saíram de rabo entre as pernas à procura de pedaços de comida no lixo que os alimenta. O Palhaço leva a mão ao bolso e só encontra nele duas pedras e uma bola de golfe já usada."


Afonso de Melo, in O Benfica

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