Deve ter sido uma das prendas mais repetidas junto dos benfiquistas que sabem ler. E até dos que não sabem. "A Chama Imensa", livro que reúne as crónicas de Ricardo Araújo Pereira sobre o Benfica no jornal "A Bola", é um retrato do amor (às vezes ódio) de um homem pelo seu clube. O Gato Fedorento, sócio número 17.411, fala-nos das origens do seu benfiquismo e de uma fé no seu clube de tal maneira inabalável que resiste à lógica, bom senso e matemática.
Esta não é daquelas entrevistas que começam com uma descrição do local onde decorreu a conversa. Não está ilustrada por um tique recorrente do entrevistado nem consta aqui qualquer referência à posição do sol aquando do encontro - até a frase "era de noite e, no entanto, chovia", faz ainda menos sentido. Ricardo Araújo Pereira, sócio número 17.411 do Sport Lisboa e Benfica, está em casa, ao computador, na véspera da véspera de Natal, a responder a perguntas enviadas dias antes por e-mail. Enquanto escreve - "não faço ideia de quanto tempo vou demorar porque tenho as miúdas, malditas férias escolares" - a compilação de crónicas "A Chama Imensa" torna-se num dos livros mais vendidos deste Natal.
É possível que a águia Vitória não volte a voar no Estádio da Luz. Vai fazer muita falta?
Sim, fará falta. E é pena. O Benfica era o único clube que conseguia organizar um espectáculo daqueles com o seu símbolo. Os leões não voam tão bem e os dragões padecem do mesmo mal que a maior parte dos penalties que se vão assinalando a favor do Porto: não existem. Ainda assim, S. Jorge matou um. Veja como deve tratar-se de um bicho irritante, para conseguir fazer com que um homem que era santo perdesse a paciência.
Qual é a sua memória mais antiga do estádio da Luz?
Talvez um Benfica-Porto de 1981. Cheguei ao terceiro anel antigo logo a seguir ao almoço, porque os jogos eram à tarde e não havia esta mariquice dos lugares marcados, como na ópera. A certa altura, Pietra deu uma soberba sarrafada ao Frasco, que ficou a contorcer-se no chão. Um consócio que estava ao meu lado gritou, com muita humanidade: "Se ele está a sofrer, o melhor é abatê-lo!" Ganhámos 1-0, golo de João Alves. Resultado magro mas, tendo em conta que o árbitro era António Garrido, foi goleada. Nesse ano, fomos campeões e ganhámos a taça, também ao Porto, 3-1 na final. Três golos de Nené. Veloso marcou um na própria baliza logo a abrir, para lhes dar um de avanço, a ver se o jogo ficava mais equilibrado. Não resultou.
Por que razão escolheu o Benfica?
Quando eu era pequeno, o meu primo António convenceu-me de que o Benfica era o melhor clube do mundo. Sem querer tirar mérito ao meu primo António, não é difícil convencer uma pessoa disso, uma vez que é verdade. Quanto ao meu primo António, é do Benfica por causa de um barbeiro que lhe cortava o cabelo no Areeiro. Portanto, em última análise, sou do Benfica por causa do barbeiro do meu primo António. Até agora, foi o máximo que consegui apurar acerca da minha genealogia benfiquista.
No seu livro fala do Shéu e do Rui Costa, de querer ser como eles. Há algum jogador da actual equipa que lhe mereça essa empatia e admiração?
Em princípio, invejo o destino de todos os rapazes que vestem aquela camisola. Hoje, gosto especialmente do Maxi [Pereira] e do Fábio [Coentrão], uma vez que só não mordem nos adversários porque as regras não permitem; do Ruben Amorim, porque é do Benfica desde os três meses - e isso nota-se no seu futebol; do Luisão e do David Luiz, porque são a melhor dupla de centrais desde Mozer e Ricardo Gomes; do Aimar, porque descobre jogadores isolados para surpresa de toda a gente - incluindo dos próprios, que se apanham sozinhos sem saber como à frente da baliza; do Carlos Martins, porque é um digno sucessor de Carlos Manuel, a locomotiva do Barreiro; e do Roberto, porque é do tamanho de um guarda-fatos que a minha avó tinha e cada vez defende melhor. E, enfim, dos outros todos.
Costuma ver os juvenis na Benfica TV e o futsal de veteranos?
Claro. Estou de olho num puto que parece o Valderrama (acho que lhe chamam mesmo Valderrama) e gosta de fintar várias vezes o mesmo adversário antes de avançar para a baliza. No futsal de veteranos, acompanho com especial interesse a carreira de um avançado que talvez tenha dois ou três quilos a mais. Isto para falar apenas nas modalidades que citou. Mas se um velhote vestir a camisola do Benfica e começar a jogar chinquilho, sou menino para ir apoiar.
A enumeração dos maiores flops do clube é uma ocupação frequente entre benfiquistas que se querem rir deles próprios. Qual é para si a mais fracassada de todas as contratações do glorioso?
Se calhar, é mais fácil fornecer-lhe o meu onze ideal de cepos: na baliza, Bossio. Moretto, Zach Thornton e Butt esperam oportunidade no banco. Lateral direito: Dudic, embora Ricardo Rojas e Gary Charles tenham valor para ocupar o lugar. Centrais: Jorge Soares e Paulão, o coice de mula. Jorge Bermúdez, Machairidis, Simanic e outros 10 ou 20 que não me ocorrem agora também eram exasperantes. No lado esquerdo da defesa, o meu coração balança entre Steve Harkness, Alessandro Escalona e Emmanuel Pesaresi. Mas se me der 5 minutos, talvez encontre pior. Trinco: Michael Thomas, com Marco Freitas, Jamir e Paulo Almeida no banco. Daqui para a frente, seria preciso escolher 5 entre Taument, Glenn Helder, Leónidas, Manduca, Luís Carlos, Luís Gustavo, Clóvis, Uribe, Hassan, Marcelo e Pringle. Uma tarefa difícil.
O que sente ao ver isto [link para o vídeo promocional da Operação Coração, no YouTube]?
Sinto alívio por já não estarmos nessa situação e incredulidade por ter sido possível convencer as pessoas a fazer essas doações. Depois lembro-me do título da Operação Coração que tenho emoldurado na minha secretária e percebo tudo um bocadinho melhor.
E isto [o golo e as lágrimas de Rui Costa depois de marcar ao Benfica enquanto jogador da Fiorentina]?
Eu estava no estádio nesse dia e na bancada também estávamos todos a chorar. Que quer que lhe diga?, os benfiquistas são pessoas sensíveis. Hoje, este episódio continua a emocionar-me, apesar de se ter tornado comum: quando o Inter marcou ao Sporting, Luís Figo também chorou. Chorou a rir, mas chorou.
Não estão em "A Chama Imensa" as crónicas todas. Como fez a selecção?
Excluí as que tinham ainda menos interesse do que as que ficaram. Só fiz ponto de honra em manter todas as que falavam de Rui Moreira. Um homem que é proprietário de um cão que ressuscita merece a distinção. Haja respeito pela Páscoa canina.
Como é ser um dos "dois rafeiros atiçados às canelas" de Miguel Sousa Tavares?
É surpreendente, porque sempre apontei para o lombo. Miguel Sousa Tavares tem uma relação um pouco conflituosa com os factos e uma grande capacidade para ignorar evidências, como certos documentos que temos vindo a ver, ler e ouvir. Ora, como disse a avó de um adepto do Benfica chamada Sophia de Mello Breyner, "vemos, ouvimos e lemos / não podemos ignorar". Palavras sábias.
Durante o período em que foi cronista de "A Bola", qual foi o melhor alvo?
Deve ter sido o Pinto da Costa. É quase inevitável, uma vez que se mantém no cargo há décadas e é um homem multifacetado, que ora declama poesia como João Villaret, ora dá indicações de trânsito como um GPS. O facto de estar a cumprir pena de suspensão por tentativa de corrupção activa enquanto se queixa das arbitragens também é divertido.
Qual é para si a equipa mais fácil de caricaturar do nosso campeonato?
É possível que seja o Sporting. Sempre que o Benfica está no fundo, o Sporting tem a gentileza de aparecer para demonstrar que é possível descer um pouco mais. Um dia depois de termos levado 5 do Porto, o Sporting jogou contra o Guimarães. Estava a ganhar 2-0. Nisto, o Vitória reduz. Depois, empata. A seguir, marca o golo da vitória. Até me passou um bocadinho da azia.
Acha que ainda vamos lá este ano?
Claro. Mas eu sou suspeito, uma vez que continuo a acreditar mesmo quando já é matematicamente impossível."
Esta não é daquelas entrevistas que começam com uma descrição do local onde decorreu a conversa. Não está ilustrada por um tique recorrente do entrevistado nem consta aqui qualquer referência à posição do sol aquando do encontro - até a frase "era de noite e, no entanto, chovia", faz ainda menos sentido. Ricardo Araújo Pereira, sócio número 17.411 do Sport Lisboa e Benfica, está em casa, ao computador, na véspera da véspera de Natal, a responder a perguntas enviadas dias antes por e-mail. Enquanto escreve - "não faço ideia de quanto tempo vou demorar porque tenho as miúdas, malditas férias escolares" - a compilação de crónicas "A Chama Imensa" torna-se num dos livros mais vendidos deste Natal.
É possível que a águia Vitória não volte a voar no Estádio da Luz. Vai fazer muita falta?
Sim, fará falta. E é pena. O Benfica era o único clube que conseguia organizar um espectáculo daqueles com o seu símbolo. Os leões não voam tão bem e os dragões padecem do mesmo mal que a maior parte dos penalties que se vão assinalando a favor do Porto: não existem. Ainda assim, S. Jorge matou um. Veja como deve tratar-se de um bicho irritante, para conseguir fazer com que um homem que era santo perdesse a paciência.
Qual é a sua memória mais antiga do estádio da Luz?
Talvez um Benfica-Porto de 1981. Cheguei ao terceiro anel antigo logo a seguir ao almoço, porque os jogos eram à tarde e não havia esta mariquice dos lugares marcados, como na ópera. A certa altura, Pietra deu uma soberba sarrafada ao Frasco, que ficou a contorcer-se no chão. Um consócio que estava ao meu lado gritou, com muita humanidade: "Se ele está a sofrer, o melhor é abatê-lo!" Ganhámos 1-0, golo de João Alves. Resultado magro mas, tendo em conta que o árbitro era António Garrido, foi goleada. Nesse ano, fomos campeões e ganhámos a taça, também ao Porto, 3-1 na final. Três golos de Nené. Veloso marcou um na própria baliza logo a abrir, para lhes dar um de avanço, a ver se o jogo ficava mais equilibrado. Não resultou.
Por que razão escolheu o Benfica?
Quando eu era pequeno, o meu primo António convenceu-me de que o Benfica era o melhor clube do mundo. Sem querer tirar mérito ao meu primo António, não é difícil convencer uma pessoa disso, uma vez que é verdade. Quanto ao meu primo António, é do Benfica por causa de um barbeiro que lhe cortava o cabelo no Areeiro. Portanto, em última análise, sou do Benfica por causa do barbeiro do meu primo António. Até agora, foi o máximo que consegui apurar acerca da minha genealogia benfiquista.
No seu livro fala do Shéu e do Rui Costa, de querer ser como eles. Há algum jogador da actual equipa que lhe mereça essa empatia e admiração?
Em princípio, invejo o destino de todos os rapazes que vestem aquela camisola. Hoje, gosto especialmente do Maxi [Pereira] e do Fábio [Coentrão], uma vez que só não mordem nos adversários porque as regras não permitem; do Ruben Amorim, porque é do Benfica desde os três meses - e isso nota-se no seu futebol; do Luisão e do David Luiz, porque são a melhor dupla de centrais desde Mozer e Ricardo Gomes; do Aimar, porque descobre jogadores isolados para surpresa de toda a gente - incluindo dos próprios, que se apanham sozinhos sem saber como à frente da baliza; do Carlos Martins, porque é um digno sucessor de Carlos Manuel, a locomotiva do Barreiro; e do Roberto, porque é do tamanho de um guarda-fatos que a minha avó tinha e cada vez defende melhor. E, enfim, dos outros todos.
Costuma ver os juvenis na Benfica TV e o futsal de veteranos?
Claro. Estou de olho num puto que parece o Valderrama (acho que lhe chamam mesmo Valderrama) e gosta de fintar várias vezes o mesmo adversário antes de avançar para a baliza. No futsal de veteranos, acompanho com especial interesse a carreira de um avançado que talvez tenha dois ou três quilos a mais. Isto para falar apenas nas modalidades que citou. Mas se um velhote vestir a camisola do Benfica e começar a jogar chinquilho, sou menino para ir apoiar.
A enumeração dos maiores flops do clube é uma ocupação frequente entre benfiquistas que se querem rir deles próprios. Qual é para si a mais fracassada de todas as contratações do glorioso?
Se calhar, é mais fácil fornecer-lhe o meu onze ideal de cepos: na baliza, Bossio. Moretto, Zach Thornton e Butt esperam oportunidade no banco. Lateral direito: Dudic, embora Ricardo Rojas e Gary Charles tenham valor para ocupar o lugar. Centrais: Jorge Soares e Paulão, o coice de mula. Jorge Bermúdez, Machairidis, Simanic e outros 10 ou 20 que não me ocorrem agora também eram exasperantes. No lado esquerdo da defesa, o meu coração balança entre Steve Harkness, Alessandro Escalona e Emmanuel Pesaresi. Mas se me der 5 minutos, talvez encontre pior. Trinco: Michael Thomas, com Marco Freitas, Jamir e Paulo Almeida no banco. Daqui para a frente, seria preciso escolher 5 entre Taument, Glenn Helder, Leónidas, Manduca, Luís Carlos, Luís Gustavo, Clóvis, Uribe, Hassan, Marcelo e Pringle. Uma tarefa difícil.
O que sente ao ver isto [link para o vídeo promocional da Operação Coração, no YouTube]?
Sinto alívio por já não estarmos nessa situação e incredulidade por ter sido possível convencer as pessoas a fazer essas doações. Depois lembro-me do título da Operação Coração que tenho emoldurado na minha secretária e percebo tudo um bocadinho melhor.
E isto [o golo e as lágrimas de Rui Costa depois de marcar ao Benfica enquanto jogador da Fiorentina]?
Eu estava no estádio nesse dia e na bancada também estávamos todos a chorar. Que quer que lhe diga?, os benfiquistas são pessoas sensíveis. Hoje, este episódio continua a emocionar-me, apesar de se ter tornado comum: quando o Inter marcou ao Sporting, Luís Figo também chorou. Chorou a rir, mas chorou.
Não estão em "A Chama Imensa" as crónicas todas. Como fez a selecção?
Excluí as que tinham ainda menos interesse do que as que ficaram. Só fiz ponto de honra em manter todas as que falavam de Rui Moreira. Um homem que é proprietário de um cão que ressuscita merece a distinção. Haja respeito pela Páscoa canina.
Como é ser um dos "dois rafeiros atiçados às canelas" de Miguel Sousa Tavares?
É surpreendente, porque sempre apontei para o lombo. Miguel Sousa Tavares tem uma relação um pouco conflituosa com os factos e uma grande capacidade para ignorar evidências, como certos documentos que temos vindo a ver, ler e ouvir. Ora, como disse a avó de um adepto do Benfica chamada Sophia de Mello Breyner, "vemos, ouvimos e lemos / não podemos ignorar". Palavras sábias.
Durante o período em que foi cronista de "A Bola", qual foi o melhor alvo?
Deve ter sido o Pinto da Costa. É quase inevitável, uma vez que se mantém no cargo há décadas e é um homem multifacetado, que ora declama poesia como João Villaret, ora dá indicações de trânsito como um GPS. O facto de estar a cumprir pena de suspensão por tentativa de corrupção activa enquanto se queixa das arbitragens também é divertido.
Qual é para si a equipa mais fácil de caricaturar do nosso campeonato?
É possível que seja o Sporting. Sempre que o Benfica está no fundo, o Sporting tem a gentileza de aparecer para demonstrar que é possível descer um pouco mais. Um dia depois de termos levado 5 do Porto, o Sporting jogou contra o Guimarães. Estava a ganhar 2-0. Nisto, o Vitória reduz. Depois, empata. A seguir, marca o golo da vitória. Até me passou um bocadinho da azia.
Acha que ainda vamos lá este ano?
Claro. Mas eu sou suspeito, uma vez que continuo a acreditar mesmo quando já é matematicamente impossível."
Grande RAP. Sem palavras.
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