"Um clube não pode nunca esquecer a sua identidade na altura em que toma decisões importantes. É verdade para Barcelona e Bayern, mas também para o FC Porto
Soa quase a traição, mas confesso que dei por mim a pensar se o Barcelona não se teria mesmo decidido a renegar a sua história, os momentos de maior glória, e escolhido um caminho contranatura, que segue em sentido oposto àquele por onde caminha com sucesso Pep Guardiola. Sempre pareceu impensável e, não acontecendo agora, continuaria a sê-lo durante muitos anos, porque essa estrada que abandona é a do ser Barça, já desbravada antes de Pep. O catalão apenas o tornou uma máquina demolidora.
Há uma caricatura aqui algures que reduz Hans-Dieter Flick a apenas uma das características do seu modelo: a da verticalidade feroz. Há mais no alemão que ganhou tudo, inclusive a Liga dos Campeões, em 2019/20. Sobretudo uma ideia de domínio e de ataque posicional, que tem de deixar alguma esperança aos culers.
Na verdade, Guardiola só há um e mesmo esse teve de se adaptar. No seu tempo em Barcelona, havia uma lei não escrita que abolia contra-ataques e cruzamentos. Eram encarados como pura heresia. Hoje, há Haaland no centro de decisão do seu City, que já não renega a objetividade na chegada à baliza, mesmo que continue a privilegiar a segurança dos 15 passes do juego de posición.
Por outro lado, tirando Tito Vilanova, adjunto e sucessor, e talvez o ainda mais purista Quique Setién, quem se sentou posteriormente no banco criou a sua própria versão, mais ou menos afastada, da que elevou a equipa ao Olimpo e lhe colou o rótulo de melhor da história. Foi assim com Tata Martino, Luis Enrique, Ernesto Valverde, Ronald Koeman e, até, com Xavi.
Se o atual técnico do PSG foi o mais bem-sucedido até pela conquista da Champions e ao do Athletic tenha faltado precisamente esse domínio continental, já o antigo pupilo parecia estar pronto a começar de onde aqueles dois tinham chegado, finalmente decalcando as ideias bem-sucedidas do mestre. Só que Xavi apanhou um clube em grave crise financeira e em fase de navegação à vista, que impedia planeamentos a médio e longo prazo, e um regime presidencialista errático até na política desportiva assumida.
Ainda reabriu as portas de La Masia, porém levou sempre demasiado a peito as críticas, tantas injustas, quando até o aconchego de Camp Nou lhe tiraram, em virtude da remodelação do estádio, e se mudaram de armas e bagagem para o alto do frio planalto de Montjuic. Ter-lhe-á também faltado estabilidade, a todos os níveis, para dar continuidade ao título de campeão e à supertaça conquistados no primeiro ano.
Chega agora Flick depois de uma experiência desastrosa e frustrante na seleção alemã. Não só em termos geracionais a Mannschaft apresentava lacunas, como algumas escolhas terão lembrado as críticas que lhe atiravam na direção da Sabener Strasse, sobretudo após uma ou outra aposta no mercado de transferências. É óbvio que o sucesso fez diluir os problemas em Munique, porém há quem não esqueça algumas decisões mais bizarras, bem como a tentativa de garantir poder de veto nas contratações, perante a direção dos bávaros. Algo que certamente também contrariaria o regime presidencialista que Laporta impôs na capital da Catalunha.
Ao mesmo tempo, em Munique, e depois de Hansi ter sido um dos muitos a dizer não à sucessão de Thomas Tuchel, confia-se no conselho de Guardiola para colocar todas as fichas, depois de um ano falhado a todos os níveis, em Vincent Kompany, que também teve a sua quota de fracasso, com a descida do Burnley ao Championship. Parece, perdoem-me, o mundo virado do avesso. Primeiro, por nenhum dos convidados querer treinar o Bayern – terão ligado a Mourinho, que certamente arranha o alemão e assim evitaria anúncios deprimentes para quem tanto festejou as suas conquistas? –, depois a escolha de Kompany, que até pode ter boas ideias, todavia, sentiu inúmeras dificuldades em aplicá-las.
Guardiola está obviamente ligado tanto ao Barcelona como aos bávaros e não deixa de ser curioso que seja o seu clube de sempre a desistir primeiro da sua filosofia – embora para Laporta tudo seja entendível tendo em conta o perfil populista e pouco estruturado – e aquele que representou durante três épocas, sem consagração continental, o que a pretenda recuperar. Pelo menos, em parte. Não seria mais lógico o oposto? Mesmo que ambos acabem, contra todas as expetativas, por eventualmente ter sucesso.
Claro que isto acontece ao mesmo tempo que, por cá, chega ao fim um ciclo de sete anos, que começou naquele «eu não vim aqui para aprender, mas para ensinar, eu sou treinador do FC Porto». Deixa o banco o técnico que, para o bem e para o mal, em muitos, muitos anos, mais ligava as bancadas ao relvado, como se fosse uma extensão destas. Além de todo o talento para a estratégia, sobretudo de um ponto de partida da anulação do adversário e do aproveitamento das suas fragilidades, mais do que da elaboração de um ataque posicional realmente impositivo perante qualquer adversário, era o primeiro a exigir o máximo aos seus atletas, um nível de compromisso que seria sempre mais elevado por ele próprio o ter vivido e sentido na pele enquanto jogador.
Virá um outro técnico e a manutenção do ADN da equipa, que é ainda o do clube, será fundamental. Os adeptos não vão querer ver ópera, se isso significar que a resiliência baixou, que não haverá faca nos dentes na recuperação de cada bola e que a equipa não sabe lutar contra as adversidades. Ainda mais, Sérgio Conceição acabou de ganhar a Taça, seriam poucos os que não prefeririam a sua continuidade, nem que fosse pela forma como manteve o grupo competitivo durante o desinvestimento.
Foram anos a fio em que todos sabiam com o que podiam contar. Hoje, não o sabem. Por isso, será para Villas-Boas importante escolher bem, a fim de que o grupo não perca o que tinha e lhe seja acrescentada ainda mais qualidade, sobretudo com bola."
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