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quarta-feira, 6 de abril de 2022

Os fogos e o fantasma de tempos idos


"O Benfica perdeu esta noite com o Liverpool, na primeira mão dos quartos de final da Liga dos Campeões, por 3-1. Houve momentos em que o 2-2 não esteve assim tão longe (mas Vlachodimos também evitou um desastre). Darwin Núñez e Rafa inventaram o golo dos portugueses. Luis Díaz fez um golo e uma assistência

As noites europeias têm qualquer coisa. Há homens que sabem jogar sobre o fogo, entre demónios, com o fogo dos que gritam por eles, sai-lhes da garganta, e que justificam de onde vieram. Mas esses homens, que não são imunes a fogo alheio, também tentam clandestinamente eliminar essa fonte de esperança. Outros aprendem a inspirar para dentro dos pulmões essa calentura toda. Percebem onde estão, entendem quem podem ser. E, assim, o Benfica discutiu um jogo com o Liverpool, na primeira mão dos quartos de final da Liga dos Campeões.
Se os lisboetas vestiram a farda tradicional, os que voaram de Inglaterra luziam um amarelo desinteressante. Luis Díaz, ex-extremo do FC Porto e talvez o melhor jogador do nosso campeonato, cedo percebeu que era um visitante indesejado. Quando o colombiano perdeu o primeiro duelo com Gilberto, o estádio substituiu num piscar de olhos os assobios pelo febre da vingança e, eufórico, celebrou.
Foram 15 minutos muito interessantes do Benfica, deixando os ingleses seriamente desconfortáveis. Os choques, duelos e a pedalada não foram aquilo tudo que a teoria dizia, que seria impossível de acompanhar. Não foi por isso que deixaram de aparecer Sadio Mané e Mohamed Salah, desinspirado, talvez ainda a sarar as feridas da não qualificação para o Catar 2022. Aos 5’, após tabela entre ambos, o egípcio, de bico, deu princípio à grande noite de Vlachodimos. Naby Keïta foi o freguês que se seguiu, resolveu o guarda-redes da casa. “Benfica, Benfica, Benfica”, ouvia-se.
Apesar de ter a bola em menos de 25% do tempo, os portugueses não iam sofrendo demasiado. Iam pecando, sim, no último passe, quando Weigl, Everton, Gonçalo Ramos (excelente exibição, solidário, adulto), Rafa e Darwin Núñez conseguiam sair de uma pressão importante. Mas o golo chegou mesmo para os que vinham de longe, aos 17’: Ibrahima Konaté ganhou nas alturas, após canto de Andy Robertson, 1-0.
O Liverpool, que vive para a urgência, serenava quando o refinadíssimo Thiago Alcântara e Fabinho participavam. Os passes de Trent Alexander-Arnold começavam a dar música, destacando-se como cabeça de cartaz. Curtos ou longos, são de uma beleza e eficácia atrozes. As diagonais dos avançados de amarelo massacravam a linha defensiva (muitos duelos ganhos por Otamendi e Vertonghen), deixando tudo em xeque. E foi assim mesmo que o 2-0 surgiu, aos 34’: o pé de Arnold, qual Beckham dos tempos modernos, descobriu Luis Díaz, que tocou de cabeça para o segundo poste, onde estava Mané para encostar, 2-0. O senegalês nem festejou.
Temia-se o pior, seria aqui testado a robustez da mentalidade dos rapazes orientados por Nélson Veríssimo. Se desligassem, incrédulos no futuro, podia tornar-se uma noite difícil e longa. Já o Liverpool talvez quisesse abrandar, congelar o jogo, confirmar o que veio fazer a Lisboa, sem esquecer que dentro de poucos dias há um encontro decisivo para o campeonato com o Manchester City. Klopp avisara antes do jogo: se alguém estiver a pensar em Guardiola e companhia, não mereciam estar ali.
O Benfica não caiu, continuou a viver das combinações curtas que permitiam respirar, com destaque para o bom Gonçalo Ramos e o generoso Weigl, acompanhados pelos competentes e enérgicos Gilberto e Grimaldo. Adel Taarabt, talvez lançado para dar soluções técnicas e sobretudo para investir no seu transportar de bola, teve uma noite infeliz, apesar de esforçado e comprometido.
Numa amostra da Premier League no Estádio da Luz, a poucos segundos do intervalo soar, Darwin disputou uma correria com Konaté, que perdeu e ganhou no mesmo segundo quase, e depois, no contra-ataque, Salah surgiu isolado (valeu Vlachodimos, claro). Na resposta, Rafa foi finalmente lançado pela direita, ganhando a posição ao imponente Virgil van Dijk, mas chutou torto.
O intervalo esfriou a cabeça, mas não apagou o fogo nas pernas e mente dos futebolistas do Benfica. Queriam mais. Não aceitavam entregar o jogo. E o golo ganiu pouco depois do início do segundo tempo: Rafa, que “uau” com bola segundo Klopp, fugiu pela direita e serviu Darwin na área. Pelo meio estava Konaté, que tremeu (já havia tremido) e falhou o corte; o uruguaio, à espreita, como um verdadeiro 9 que acredita nas inexistentes nuvens no deserto, recebeu com o pé esquerdo e, calmamente, meteu no poste mais longe, 2-1. Há vida. A Luz galvanizou-se.
O Liverpool voltou a estar desconfortável e até já via os rivais a tentarem jogar por dentro, com a bola mais obediente, menos temorosa. O 2-2 quase pingou, mas o contra-ataque conduzido por Ramos culminou num remate de Everton defendido por Alisson. Os de vermelho estavam em superioridade numérica, mas o internacional brasileiro, bem enquadrado, tentou confirmar pintar com glória os bons momentos que ia vivendo no jogo. Klopp, insatisfeito quem sabe e a pensar no City, mudou as coisas e lançou três feras: Jordan Henderson, Roberto Firmino e Diogo Jota (por Thiago, Mané e Salah). Veríssimo respondeu, oferecendo uma trégua a Taarabt, avançando o desafinado Soualiho Meïté para o meio-campo.
Os quase 60 mil adeptos já iam testemunhando o cansaço a entrar no coração de algumas ações. Rafa, que despertou na segunda parte, ia aspirando o ar como quem queria engolir o céu. Darwin, que a certa altura pediu um penálti de van Dijk, estava empenhado em ir a todas. Ramos idem. Nesta altura já estava garantido que se tratava de uma exibição importante, carregada de um sentimento que enche o reservatório do orgulho de cada futebolista.
Luis Díaz, derretendo os assobios, ia acumulando dribles, movimentos e não perdia de vista a baliza. Já fizera uma assistência, queria mais qualquer coisa para dar àquela gente uma boa razão para assobiar tristemente. O que aconteceria.
Yaremchuk substituiu Everton. O ucraniano não teria oportunidade de participar nem de finalizar. O Liverpool já há muito colocara o jogo num frapê, geladinho, quis calar a Luz, acalmar aquela gente que ousava acreditar em algo. Os futebolistas, menos fogosos, nunca desistiram. Aos 83’, após atraso para Alisson, Rafa fez um sprint que se calhar tinha espaço nos Jogos Olímpicos e ameaçou a tranquilidade do guarda-redes brasileiro, que fintou o avançado e se embrulhou com a bola quase ao mesmo tempo. O empate esteve ali, Rafa não teve a sorte do seu lado. Teve antes a dignidade, aquela corrida é de quem está ligado, de quem precisa de dar a vida e vida àquela eliminatória, aos colegas, ao seu ânimo, quiçá esfarrapado nos últimos tempos.
Pouco depois de João Mário entrar por Gonçalo Ramos, um desacerto numa saída de bola de Otamendi sobrou para os pés de Keita. O médio correu, correu, até que lançou Luis Díaz, que tinha um assunto para tratar com aqueles milhares de adoradores mas ao contrário. O colombiano, na cara de Odysseas, contornou o guarda-redes e bateu com a canhota para o 3-1, sossegando uma parte da população de Liverpool. Vlachodimos, já em cima da hora, ainda evitou o 4-1, saído dos pés de Diogo Jota.
Segue-se a viagem a Anfield, com o arrependimento inútil daquele erro que ditou o 3-1, mas sabendo também que não faltaram oportunidades ao Liverpool para o marcador contar uma história complicada. Ficam, apesar de tudo, algumas certezas: há qualidade e pernas, existem argumentos para combinações rápidas e luminosas, vislumbrou-se orgulho e sacrifício. As noites europeias têm qualquer coisa, não é? É o fogo, é o fogo."

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