"Quer seja semana após semana, quer seja de quatro em quatro anos, o indivíduo é mobilizado, é convocado, para seguir a sua paixão dando largas ao ardor e ao arrebatamento – há quem lhe chame libertar as emoções, extravasar energias ou procurar a excitação. São manifestações litúrgicas…
Para tal é necessária a existência do ‘show’ desportivo. Nele se vertem paixões sem se dar conta que as mesmas toldam a razão, não tendo a grande maioria dos apaixonados a capacidade para controlar a simultaneidade da paixão e da razão. Muitas vezes a paixão exacerbada resulta em fundamentalismo, um campo fértil para o desporto.
O espectáculo só produz entretenimento ou divertimento. Não é um bem palpável mas é uma mercadoria que se situa mais na esfera do imaterial. E o entretenimento “é desprovido de qualquer acesso ao conhecimento. Diverte sem aumentar o conhecimento”, como refere Byung-Chul Han (1).
Por seu lado, o espectáculo não existe sem o espectador. A excelência – ‘areté’ no tempo dos gregos e ‘virtus’ no tempo dos romanos – sempre foi do domínio público. A validação da acção do indivíduo na qual pretende sobressair e distinguir-se dos outros implica que a mesma fuja à obscuridade ou mesmo à negritude. Como nos disse Hannah Arendt (2), “para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença dos outros, e essa presença requer um público formal”.
O espectador existe desde o início da humanidade, tando talvez nascido com a contemplação das pinturas rupestres, tendo o progresso, ou a civilização, determinado um espectáculo actual muito diferente do espectáculo da Pré-história, mas que aí encontra as suas raízes. A evolução do ser humano acompanhou novas formas de divertimento e este foi-se adaptando aos tempos relativos à sua época histórica. A história do desporto, a história do espectáculo, está registada, mas não a do espectador. É pertinente a questão que nos coloca Marie-José Mondzain (3): “Será possível fazer-se uma história do espectador sem nela anotar uma história da crença e, logo, de todas as figuras sub-reptícias ou violentas da persuasão e da convicção?” Sem nos preocuparmos com a resposta e quedando-nos apenas pela pergunta verificamos que «espectador», «crença», «violência» e «persuasão» são conceitos que fazem parte da história da humanidade e têm acompanhado o ser humano ao longo dos séculos .
A essência mais profunda do desporto-espectáculo não reside no facto de o desportista procurar superar-se cada vez mais, de optimizar o seu corpo, de se tornar um herói ou um ídolo. Não reside num escalonamento, num ‘ranking’ e na obtenção de um título. Não reside na meritocracia.
A essência mais profunda do ‘show’ desportivo assenta sim no facto do espectador poder alimentar o seu ‘ego’ com aquilo que não consegue mas gostaria de conseguir fazer (por isso os psicólogos falam em identificação e em projecção) vivendo, segundo o mesmo, assim, momentos inolvidáveis. A essência mais profunda do ‘show’ desportivo assenta na criação do consumidor – o adepto foi há muito ultrapassado – tendo o comércio, o negócio, a publicidade e o ‘merchandising’ tomado conta do desporto.
Por que motivo os logotipos de grandes marcas nos equipamentos, nomes de produtos ou de empresas nos painéis que circundam o campo, nos ‘outdoors’, nos painéis por detrás dos pódios e nas conferências de imprensa, nas costas das camisolas, ou até em cartazes e nos bilhetes? Nós não damos conta mas… existe a recepção de mensagens directamente pelo cérebro pela via ocular sem o crivo crítico da consciência, mas que ficam registadas no nosso inconsciente, como refere Flávio Calazans (4)… e as “mensagens que pouco a pouco levam à adesão, inconscientemente reforçando a cognição consciente gerada pela campanha publicitária tradicional, constituem a propaganda subliminar multimídia.”
É essa propaganda que cria o consumidor. E embora a noção de propaganda seja diferente da de publicidade – a primeira é uma forma de transmitir ideias que procuram influenciar o nosso comportamento enquanto a segunda é uma forma de comunicação que procura promover perante o público um serviço ou um produto –, o objectivo é fazer registar uma imagem no nosso cérebro a fim de modificarmos o nosso comportamento consumista e mais tarde adquirirmos esse produto. E quando compramos o produto, não estamos só a pagar o mesmo… estamos a pagar a própria publicidade! O consumidor final, o tal que está na cauda da cadeia alimentar, é o tal que tudo suporta.
Daí o ser importante, para os promotores do espectáculo desportivo, fazer com que a nossa mente inconsciente repare em coisas nas quais a mente consciente não repara mas regista – as imagens subliminares."
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