"Em 2020 Remy Blumenfeld (1) trouxe-nos a história do aluno que teria perguntado à antropóloga Margaret Mead (1901-1978) qual seria o primeiro vestígio da existência da civilização humana. A antropóloga americana teria respondido: “Um fémur com 15 mil anos encontrado numa escavação arqueológica.” E esta ter-lhe-ia explicado que o fémur encontrado revelava indícios de se ter partido e ter cicatrizado, o que implicava que alguém tinha cuidado daquele ser humano, abrigando-o, alimentando-o e protegendo-o, até porque naquela altura aquela recuperação teria demorado provavelmente seis semanas. Segundo o mesmo, Margaret Mead teria acrescentado que, na natureza, no reino animal, a quebra de uma perna implicava a morte. Não se poderia fugir do perigo, não se poderia beber ou procurar comida. Ferido dessa forma, o animal seria carne para os seus predadores. Nenhuma criatura sobreviveria a um fémur quebrado por tempo suficiente para o osso se curar sem auxílio. Seria comida primeiro… Assim, para a antropóloga, cooperar com alguém numa ajuda para ultrapassar dificuldades seria o ponto de partida da civilização.
Considerando este acontecimento como o início da civilização, é no entanto comum considerar-se a Mesopotâmia como berço da civilização ocidental. Se a escrita aí desabrochou (por volta do ano 3200/3100 a.C.), verificamos que entre este acontecimento e o descrito por Mead medeiam cerca de 11.000 anos. E entre o aparecimento da escrita e o relato de Mead estão aproximadamente 5.000 anos.
A civilização, considere-se o que se considere ser o seu início, foi (é) um processo lento e moroso que avançou (avança) passo a passo, ponto a ponto, conto a conto… Tal como o desporto…
Se até à primeira grande guerra mundial se pode dizer que o desporto estava preocupado com objectivos como a educação e a moral, a partir desta a incidência passou a ser no espectáculo e, lentamente, a comunicação social, a economia, a política e a publicidade tomaram conta deste. Durante e após a década de 80 do século passado o desporto foi-se transformando numa actividade que gera comércio, tornando-se ele próprio um comércio – passou-se do ócio ao negócio.
Actualmente o desporto vive do e para o alto rendimento recorrendo ao profissionalismo, é movido pelos ‘mass media’ e pela publicidade, exige sensacionalismo e recordes, nele tudo é quantificado, idolatra os heróis, é determinado pela ciência e pela tecnologia e é gerido pelo lucro, pela política e pelo direito.
Do amadorismo ao profissionalismo, do livre associativismo à legislação actual, do jogo pelo jogo aos actuais investimentos, o desporto saltou de paradigma em paradigma… Como? Lentamente... sem irmos tendo a percepção de tal. A par de um processo civilizacional temos um processo do fenómeno desportivo. Pequenas alterações vão sendo introduzidas espaçadamente (a árvore), pequenas modificações vão-se interpenetrando e aglomerando ao fim de algum tempo e, sem darmos conta, chegamos ao momento actual (a floresta). De um modelo de competição sem regras chegamos a um modelo de processos de interpenetração com normas que mostra “como a teia de relações humanas muda quando muda a distribuição de poder.” (2) De tal modo que já não é o desporto que é um reflexo da sociedade, mas sim a sociedade que é a imagem do desporto!
Este avanço – processo – não foi no entanto acompanhado pela nossa mente, pelo nosso raciocínio, e por isso mesmo ideologicamente ainda nos encontramos agarrados a ideias que nos foram vendidas e nós comprámos (o espírito desportivo, o espírito olímpico, o amor à camisola, a verdade desportiva, o ‘fair play’, a ética, os valores) noções essas que se utilizam constantemente em discursos de circunstância sem ninguém se preocupar em esclarecer o seu real significado (talvez por já se encontrarem esvaziadas de sentido mas funcionando bem como ‘cliché’) quando a realidade actual é bem diferente. Ideias que nos continuam a inculcar sob uma nova roupagem… a roupagem da moda. E se a moda não incomoda, como diz o povo, quando a moda é tóxica incomoda mesmo (pelo menos os mais atentos ou os mais pragmáticos).
A criação dos clubes-empresa, de que Claude Bez foi o impulsionador em 1984, a criação das SAD’s, a acção desenvolvida por Jean-Marc Bosman, e mais recentemente a aquisição do Newcastle por um consórcio liderado pelo Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita isso nos mostram lá fora. Entre nós, o mesmo nos é mostrado pela evolução desde a Lei de Bases do Sistema Desportivo (1990) até à comercialização centralizada dos direitos televisivos dos jogos de futebol (2021), passando pelo Regime Jurídico das Federações Desportivas (2008) e pelo Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online (2014). No desporto, hoje em dia, conta mais o poder económico que o poder organizativo. No desporto, hoje em dia, conta mais o lucro que o resultado desportivo. Não é por acaso que existem gabinetes de ‘marketing’ nos grandes clubes, tal como não é por acaso os mesmos possuírem canais televisivos. Não é só o espectáculo que vende, a publicidade também vende… e não vende só a mercadoria, vende sonhos, vende esperança.
E, por muito que certas personagens com responsabilidades na sociedade (e no desporto) nos tentem submeter à crença de que o futebol é uma indústria e não um comércio, seria bom que essas mesmas personagens nos explicassem o que é “a transparência, a integridade e a boa governança”… até porque os estereótipos tendem a transformar-se em mito.
Nos últimos tempos alguns autores (Harari, Damásio, Cregan-Reid) trouxeram-nos de novo o facto de ter sido a cooperação entre seres humanos o grande motor da civilização e não a competição. Muito menos a competição-espectáculo… até porque, nos dizeres de Pier Vincenzo Piazza (3), “todos os seres vivos produzem entropia quase exclusivamente com a finalidade de sobreviverem. O homem é o único que parece gostar de a criar ou de a aumentar apenas para se divertir.” E acrescenta ainda este autor que “quanto mais elevada for a entropia de um recurso, maior a sua abundância e omnipresença.” E aí está o desporto, um recurso extenso, enorme, grandioso (passe o pleonasmo) em abundância e em omnipresença.
A pedagoga Maria Montessori (1870-1952) também nos disse que “as pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos a educar para a paz!” (4)
Mas nós continuamos a comprar (e a acreditar) naquilo que nos vendem… a nossa ingenuidade (ou a forma como somos manipulados) acompanha transgressões a princípios éticos e a normas morais. E quando somos adeptos, quando nos orgulhamos dessas transgressões então estamos de facto condenados…
Post Scriptum: Jorge Valdano escreveu em «A Bola» (16.10.2021, p. 40) o seguinte: “Há um grande engano cultural em que todos estamos metidos e que diz no seu enunciado mais simples: a vida é uma competição e apenas se salva o vencedor. O futebol envolveu-se nessa dinâmica como se fosse o ‘Squid Game’, embora neste momento as vítimas sejam apenas morais.” Provavelmente uma observação acertada… No mesmo diário, Vítor Serpa (23.10.2021, p. 31) diz-nos que “as mudanças no futebol, no país e no mundo são imparáveis. Não adianta ser contra, porque elas, inevitavelmente, irão seguir o seu caminho.” Uma constatação, provavelmente mais que correcta…"
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