"O IFAB fez um esclarecimento técnico sobre uma situação ocorrida no último FC Porto - CS Marítimo.
Como se recordarão, Amir defendeu um pontapé de penálti estando numa posição "atípica" no momento do remate: tinha o pé direito atrás da sua linha de baliza e o esquerdo à frente.
Ou seja: quando Alex Telles rematou, o GR do Marítimo não tinha nenhum dos pés sobre a linha.
Estaria tudo certo se a Lei 14 não referisse expressamente que, quando se dá a execução de um "penalty", os guarda-redes devem e cito "permanecer sobre a linha entre os postes da baliza" e "ter pelo menos parte de um dos pés a tocar nela ou alinhado com a baliza".
Portanto, à luz das regras, quando defendem um remate nessas condições, estão a infringir.
O problema, no entanto, é outro: a lei nem sempre diz o que quer, da maneira que pode e deve. Neste caso, a ideia de criar essa imposição - a de ter, pelo menos, parte de um dos pés sobre a linha - não foi no sentido de impedir que os GR tivessem um pé mais recuado, como Amir tinha; foi no sentido de evitar que adiantassem os dois.
Isto porque há a convicção generalizada que, num pontapé de penálti, os guarda-redes só retiram vantagem se tiverem os pés à frente da linha.
Eu acho que não é bem assim: na prática, um pé atrás pode ajudar a dar um impulso para a frente, potenciando a hipótese de defesa. Amir parece concordar comigo.
Coloca-se então o eterno dilema, comum a tantas outras áreas de atividade onde se impõe interpretar normas com justiça:
- Que leitura fazer da regra? Deve aplicar-se a letra, que neste caso é taxativa, ou o espírito que pode estar subjacente?
No caso concreto, o entendimento do IFAB é que se deve aplicar o "espírito da lei". Quer isso dizer que aceitam que um GR que não tenha nenhum dos pés ou parte de um sobre a linha (porque tem um à frente e outro atrás) não está a infringir.
Sobre esta análise, duas notas rápidas:
- A primeira e mais importante serve para recordar que o International Board é soberano e tem legitimidade para definir todas as questões relativas às leis de jogo. Podemos concordar ou discordar, mas devemos respeitar e acatar.
- A segunda é que essa obediência não deve castrar o sentido crítico de quem faz leitura distinta e eu faço.
Na minha opinião, quando uma regra é tão factual e evidente, quando a sua letra diz tudo de forma indiscutível, não há margem para lê-la de forma distinta. O mais certo é estar errada, mas isso corrige-se na primeira oportunidade que surja.
Qualquer pensamento legislativo que vá além da letra da lei tem que ter um mínimo de correspondência verbal com o seu texto e aqui não tem. Aliás, tem exatamente o oposto: a letra diz pune, o "espírito" diz segue jogo.
Todos os dias esbarramos em situações com as quais não concordamos mas que sabemos que devemos acatar, por serem demasiado claras e incontornáveis.
Isto faz-me lembrar a velha história dos semáforos que controlam velocidade nas localidades. Estão lá com um objetivo importante: evitar excessos que ponham em perigo as pessoas, sobretudo quando o comércio e as escolas estão abertas, porque há muito movimento e passagem frequente de peões.
No entanto, se qualquer um de nós passar o vermelho às quatro da manhã, sem que esteja uma alminha na rua e ainda que a circular a menos de 20Km/hora, somos multados.
É que, apesar de não ser esse o objetivo - multar gente a meio da noite, numa rua deserta e sem perigo à espreita -, a regra imposta pelo Código de Estrada é soberana: sempre que alguém passe um sinal vermelho, está a infringir. Ponto.
Quem é multado naquelas circunstâncias pode até sentir-se meio injustiçado, mas tem que pagar.
Voltando aos "penáltis": a partir de agora qualquer GR sabe que pode não ter parte dos pés sobre a linha, como a lei exige. Basta que tenha um mais recuado e o outro adiantado. Aliás, pode até tentar a sua sorte e colocar os dois pés atrás da linha (dentro da baliza).
A letra da lei também é clara e não permitindo que permaneçam aí (até porque isso os coloca fora do terreno de jogo), mas o princípio é o mesmo: o espírito diz que quem está mais recuado não tira benefício.
Não faz sentido
A Lei 14 não está, de facto, redigida da melhor forma (nesta matéria e noutras) e isso não acontece por malvadez do legislador: a verdade é que é quase impossível prever todas as situações de jogo.
Para que tenham uma ideia, neste momento estão tipificadas oito infrações diferentes no que diz respeito a pontapés de penálti.
Se os árbitros as cumprissem à risca, garanto-vos que não havia um único pontapé que não fosse, pelo menos, repetido.
O problema é o critério: há quem seja mais e menos rigoroso, há quem esteja mais e menos atento. É uma grande chatice.
Esta amplitude de intervenção pode ser perversa para os árbitros e para o futebol.
Os pontapés de penálti não são infrações menores: são momentos-chave do jogo. Criam claras oportunidades de golo. Podem determinar resultados e afetar campeonatos.
A lei que os regula deve ser o mais objetiva possível, não pode ter incoerências nem potenciar interpretações mais ou menos literais, consoante a natureza da infração ou a delicadeza do lance.
Tem que criar mecanismos que permitam aos árbitros decidir, da mesma forma, o mesmo tipo de situações.
Não há outra forma."
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