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quarta-feira, 15 de abril de 2020

Leis do futebol: o que muda e o que não muda

"Não se aproveitou a oportunidade para um aspecto fundamental do VAR: a comunicação com o árbitro de campo poder ser ouvida

1. Foram conhecidas as alterações às leis do jogo de futebol para a próxima temporada. Em A Bola de sábado passado, Duarte Gomes explanou, com clareza, as mudanças, a sua razão de ser e as consequências que delas poderão advir. Do seu oportuno texto pude concluir que todas elas se justificam, ainda que eu as considere timoratas. De facto, organismos mundiais que tutelam o futebol mantêm uma atitude excessivamente conservadora, embora compreenda que não se devam precipitar e funcionar como câmaras de ressonância do actualismo puro e duro.
De todas as alterações, sublinho duas: a primeira - que já tardava - tem que ver com a definição futebolística de «mão na bola», que nunca coincidiu, aliás, com a anatomia da dita. Nela se inclui, como é óbvio, o braço e o antebraço, sendo agora convencionado que o braço no «limite inferior da axila». Assim sendo, o ombro passou a não ser punido, o que, convenhamos, sempre foi uma hiperbolização anatómica da mão e uma exageração de o incluir no braço. Como, para qualquer regra, é quase impossível determinar os limites do limite, imagino já a discussão que vai haver sempre que o esférico bata parcialmente no ombro e no agora independente braço. Será que, nestes casos, se vai aplicar a regra dos limites da linha de golo, ou seja que só será ombro se a bola ultrapassar totalmente o confinamento do braço? E como será quando o jogador da equipa infractora tiver os ombros descaídos?
O segundo ponto, que aqui realço, está relacionado com a decisão de ida mais frequente (obrigatória mesmo?) dos árbitros ao monitor para visionar os lances com margem de subjectividade. Espero que, assim, termine a arbitrariedade arbitral, passo o pleonasmo, de se poder escolher quando se vai ou não vai, nem sempre com critério uniforme. Mas, como bem referiu Duarte Gomes, não se aproveitou a oportunidade para um aspecto fundamental do VAR, qual seja a de a comunicação com o árbitro de campo poder ser ouvida e sindicada. Estão à espera de quê?

2. Aproveitando a boleia destas novidades, e com a à-vontade de ser um mero e curioso leigo destas matérias, escrevo aqui sobre o que, neste domínio, tenho reflectido. Antes, porém, devo reforçar o que disse atrás, agora de outro modo: nem tão devagar, nem tão depressa. Reconheço que as mudanças devem ser analisadas, evitando, por um lado, o imobilismo incompatível com a importância desta actividade e a disponibilização de novas tecnologias de aferição, e, por outro lado, a pressa que anula o amadurecimento e a estabilidade necessárias para o futebol do novo século.
Selecciono, aqui e agora, apenas cinco pontos.
Começo pela magna questão do tempo de jogo jogado. Tenho cada vez mais dificuldade em perceber que o futebol, de tão marcante na sociedade contemporânea, continue a ter como um dos seus alicerces, alguma discricionariedade na contagem do tempo e algum favorecimento do antijogo. Quase todos os desportos colectivos têm contagem do tempo útil ou mais cedo, tal não venha a acontecer no futebol. O espectáculo melhoraria, a batota seria reduzida, não haveria tantos espaços mortos, a subjectividade do tempo não teria cabimento. Todos assistimos ao esplendor das tecnologias e das estatísticas de um jogo de futebol, do tempo de posse de bola até ao tempo e espaço percorrido por cada atleta. Então qual a dificuldade em medir o tempo efectivo de jogo, por exemplo, 30 minutos em cada parte? Não percebo tanta hesitação. Mas, já agora com a função do VAR, porque não começar, ainda que parcialmente, pela compensação exacta do tempo de paragem durante o escrutínio de uma jogada?

3. Um outro aspecto que aqui considero é o relativo ao fora-de-jogo. Tudo se esmiuçou, disse e escreveu sobre os limites a considerar pelo VAR e a ser sancionados pelo árbitro. Temos exemplos nacionais e estrangeiros de anulação de golos por offside de 2, 3 ou 4 centímetros. Sabemos que a distância entre um frame e o seguinte pode anular esses escassos centímetros. Temos todos presente o sempre invocado direito consuetudinário de que, em caso de dúvida, se deve favorecer quem ataca. Por isso, é incompreensível que não se tenha já avançado - ao menos como recomendação - que os limites para o fora-de-jogo fossem apenas contados a partir dos centímetros que a uma velocidade média do passe representem um só frame. Com tanta tecnologia à disposição não deverá ser difícil obter um consenso dos tais centímetros de 'terra de ninguém'. A partir dela, então compreende-se que tanto basta um centímetro, como dez, vinte ou trinta, para assinalar a infracção.

4. Quanto às substituições considero que, as contagem das três possíveis (quatro de houver tempo-extra), não deveriam ser incluídos os guarda-redes. Primeiro, porque é justo, pois que um guardião é um lugar muito especial, que não deveria ser substituído por um jogador de campo pelo facto de já se terem esgotado as substituições possíveis. Segundo, porque seria, igualmente, uma forma de o treinador gerir o desempenho e eventual substituição, não limitado pelos numerus clausus determinado na lei. Por fim, poderia ter um outro aliciante: o de rodar mais os guarda-redes. Assistimos agora a plantéis com dois ou mais excelentes keepers, em que os não titulares passam uma época inteira no banco ou em casa, o que além de ser frustrante é também caro para os clubes. E talvez visse a contribuir para diminuir uma prática ora em voga - que eu nada aprecio - de ter um jogador para umas competições e outro (pouco rodado) para outras.

5. Voltando ao VAR, porque não alargar a sua função às expulsões por segundo cartão amarelo? Caso tal acontecesse, o VAR deveria revisitar o primeiro amarelo e apreciar o segundo imediatamente mostrado antes da cartolina vermelha. E, se fosse o caso, chamar a atenção do soberano árbitro para eventuais injustiças, lapsos ou erros deste.

6. Por fim, uma partida - que não fazendo parte das leis do futebol - teima em manter-se desde que foi iniciada há mais de 55 anos na Holanda e depois generalizada, pelo menos na Europa. Refiro-me ao desempate recorrente por maior número de golos marcados no jogo fora de casa.
Ao que li, a UEFA está desde o ano passado para decidir a abolição desta regra, mas, com a lentidão exasperante típica de organizações pesadas, burocráticas e demasiado conservadoras, nada aconteceu até agora.
Esta regra foi introduzida num tempo em que o futebol era muito diferente do que é agora. No plano das competições europeias, jogar fora de casa implicava viagens menos acessíveis e directas, desconhecimento das condições de treino, relvado, e outros aspectos operacionais do adversário, bem como a quase total ausência de adeptos seus. Na sua génese esteve também o objectivo de premiar mais o futebol ofensivo. Com o tempo, este critério subsidiário de desempate foi-se generalizado de uma maneira, aliás, incompreensível em competições do tipo campeonato ou em fases de grupo europeias.
Com a evolução das condições e o conhecimento detalhado de qualquer adversário, tudo mudou e jogar fora deixou de ser uma desvantagem notória. As razões apontadas desapareceram, a regra perdeu sentido e teve consequências negativas e contrárias à ideia do futebol ofensivo. Por exemplo, um empate 0-0, em casa, na primeira mão, passou a ser visto como um razoável resultado, o que não deixa de ser um desporto que vive da abundância de golos. Uma equipa a jogar em casa preocupa-se, por vezes, mais em não sofrer do que em marcar.
Acresce um ponto que sempre me pareceu injusto e enviesado. Havendo necessidade de prolongamento, a equipa forasteira está em vantagem pois vai jogar mais meia-hora com a possibilidade de golos que poderia valer a dobrar. E se bem verificarmos, na maioria destes prolongamentos, as equipas de cada jogam para passar o enfadonho tempo, pois sabem que um golo da equipa oponente é quase a 'morte do artista'. Pelo menos esta parte da regra, deveria ser abolida imediatamente. Aliás, ficou para sempre ligado ao futebol português quando o Sporting foi eliminado pelo Glasgow Rangers depois do empate 1-1 no tempo extra, apesar de ter vencido no desempate por penáltis que o equivocado árbitro consentiu. Outra história curiosa é da meia-final da Champions em 2003 entre o Milan e o Inter, tendo passado esta última equipa, embora com dois empates nos jogos 0-0, em casa do Inter e 1-1 em casa do Milan. Acontece que o estádio das duas eliminatórias era (e ainda é) o mesmo, San Siro.
Por cá lembro uma situação contrária. No campeonato de 1977/1978, Benfica e Porto terminaram com os mesmos pontos (o SLB até não sofreu nenhuma derrota). O título foi para os portistas, pela melhor diferença de golos totais, assim quebrando o ainda mais período de jejum entre os grandes, 19 anos. Logo a seguir passou a existir a regra dos golos fora nos jogos entre equipas empatadas. Se tal já existisse antes, teria sido o Benfica campeão (0-0 na Luz e 1-1 nas Antas)."

Bagão Félix, in A Bola

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