"O árbitro que irá apitar o Benfica-FC Porto de domingo (18h, BTV) terá percorrido milhares e milhares de quilómetros em terra batida, sintéticos e relvados e será, quase certamente, mais velho, mais maduro e mais experiente que grande parte dos atletas que o disputarão. Mas nada disso chegará, nada disso contará, nada disso importará
No domingo, às 18h (transmissão BTV), é quase certo que o país, todo o país, irá parar durante cerca de duas horas (mais coisa menos coisa, vá).
Joga-se em Lisboa o inimitável, o inenarrável, o incomparável "SL Benfica-FC Porto", momento desportivo recheado de história e de histórias mas que, por força das (muitas) circunstâncias do momento, será garantidamente aquilo que muitos antecipam como... o jogo do título. Do tudo ou nada.
O jogo das ilusões e das desilusões, das alegrias e das frustrações, dos que sairão derrotados e dos que se sentirão campeões.
É incontornável: aos olhos dos aficionados, o tamanho deste clássico é maior, bem maior do que outro alguma vez foi. Naturalmente. Compreensivelmente.
Mas o clássico de domingo não é apenas dos adeptos apaixonados e dos fiéis associados, das claques empenhadas e dos indefectíveis e apaixonados.
O clássico de domingo é também o dos jogadores e dos treinadores. Antes de tudo e acima de tudo. É o do seu talento, do seu empenho e do seu profissionalismo. O clássico de domingo é dos seus organizadores e promotores. Daqueles que o pensam, preparam e concretizam. O clássico de domingo é o das forças policiais e das equipas médicas. Que zelam pela segurança, pelo bem-estar e pela saúde física dos que pagam para assistir e aplaudir. O clássico de domingo é dos jornalistas, dos olheiros, dos patrocinadores e dos empresários. Que procuram criar valor, rentabilizar investimentos e detectar talentos.
O clássico de domingo é também o dos árbitros e da arbitragem. Daqueles que regulam a força entre duas forças. Daqueles que gerem emoções, avaliam situações e tomam decisões.
Ser árbitro de um clássico é estar no centro do mundo. No olho do furacão. É alegria imensa, expectativa enorme e ansiedade constante. É saber que dificilmente tudo correrá muito bem e que provavelmente algo correrá muito mal.
Não há juiz que resista à sentença da emoção. Nem aqui, nem na China nem no Paquistão. E, num clássico, não há emoção que perca a batalha com a razão. É derrota garantida, mesmo que na verdade o coração seja vencido e o jogo seja bem conseguido.
O árbitro que dirigirá o próximo Benfica-Porto será categorizado. Terá muitas e muitas centenas de jogos no currículo. Será (seguramente) internacional ou de estatuto equiparado. Terá percorrido milhares e milhares de quilómetros em terra batida, sintéticos e relvados. O árbitro que dirigirá o próximo Benfica-Porto será, quase certamente, mais velho, mais maduro e mais experiente que grande parte dos atletas que o disputarão.
O árbitro que dirigirá o próximo Benfica-Porto já escalou muitas montanhas, já dirigiu jogos intensos e já provou que tem valor. Mas no próximo domingo, nada disso chegará, nada disso contará, nada disso importará.
O árbitro que dirigirá o jogo de domingo será sempre aquele que não mostrou o amarelo aqui, não marcou o fora de jogo ali, não expulsou o jogador acolá.
O jogo que ele dirigirá será sempre discutido, julgado e condenado, porque aquilo que for certo aos olhos de uns, será falha grave aos olhos outros. Mesmo que a tecnologia ajude. Mesmo que o videoárbitro intervenha. Mesmo que a dúvida legitime.
Não há nada mais injusto do que tentar explicar a um mundo de emoções quais foram as nossas momentâneas razões.
Não há como explicar-lhes que aquilo que vêem nas imagens televisivas não é o mesmo que intuem, sentem e percepcionam em campo. Não há como contar-lhes que no relvado o jogo tem vida, corpo e humanidade e que a televisão despe-lhe parte da alma e da intensidade.
Em campo, as pancadas ouvem-se. As malandrices topam-se. Os olhares denunciam. A dúvida alimenta.
Em campo, os sentidos estão despertos, apurados. O que não se vê de verdade, o que não se vê na totalidade, cheira-se. Intui-se. Adivinha-se. Pressente-se.
Mas nem com faro apurado se acerta sempre. O cansaço surge. As pernas pesam. O suor escorre. O ângulo encurta. O ruído ensurdece. A adrenalina aumenta. O coração dispara. A lucidez dilui.
E num clássico, as situações ganham outra dimensão. As jogadas multiplicam-se e o grau de dificuldade dispara, em que cada lance, a cada entrada, em cada disputa.
Num clássico, os jogadores estão mais tensos, mais empenhados, mais nervosos. Cada falta pode ser o fim da picada, pode desencadear pancada. Cada infracção pode gerar protestos. Cada decisão pode espoletar conflitos, empurrões e agressões.
Num clássico, o público assobia, protesta e insulta ainda mais. Os bancos transbordam de nervosismo e saltam, como molas, em cada micro-decisão, em cada banal reposição. Num clássico, há mais flashes e luzes, que disparam balas de luz entre os fios de nylon que cosem as redes das balizas. É muito, mas mesmo muito difícil.
Há momentos em que um árbitro, por mais forte e seguro que seja, sente a sua limitação humana perturbada, ameaçada por tamanha floresta de sensações, por aquele turbilhão de reacções.
E sendo certo (mais do que certo até) que há quem avalie bem e quem avalie menos bem, que há quem acerte mais e quem acerte menos, que há quem tenha mais feeling e quem tenha menos sensibilidade para a função... no clássico de domingo, o inferno estará bem mais perto do que o céu, a serenidade bem mais longe do que a aflição.
Esperemos, no entanto, que seja um espectáculo de qualidade. Um espectáculo que se cinja apenas e só ao relvado. Um espectáculo que não se arraste para além dele, que não se alastre para fora dele.
Esperemos que seja um hino ao civismo, ao respeito e ao desportivismo. Que seja uma prova global de saber vencer e de saber perder. De aceitar acertos e de tolerar erros. De saber estar na alegria e na desilusão.
Quando as más notícias são quase garantidas, qualquer coisa boa soa a excepção. E no domingo há muita gente que pode tornar o clássico numa lição memorável de cidadania e educação.
Venha daí o milagre."
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