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sexta-feira, 13 de abril de 2018

O barco que transportou o primeiro Mundial dentro dele

"Correr, conversar, descansar e nada de tácticas. Foi assim a viagem de duas semanas do Conte Verde em 1930 que levou quatro selecções, três árbitros e a taça do mundo rumo ao Campeonato do Mundo inaugural no Uruguai. (Esta é a primeira história na nossa nova série enquanto Portugal não entra em campo no Mundial da Rússia)

Vamos fazer um pequeno exercício. Deixe a sua cabeça entrar no ritmo da música do Barco do Amor (se precisar de uma auxiliar de memória, é só clicar no vídeo em cima) e entre no espírito de viagens exóticas e romance que a série semanalmente prometia. Agora é concentrar tudo num espaço de duas semanas, substituir “Barco do Amor” por “Conte Verde” e romance por futebol. É o “rumo para uma nova aventura” que muitos dos passageiros devem ter sentido quando embarcaram rumo ao encontro com a história.
O destino era o Uruguai e o primeiro campeonato do Mundo organizado pela FIFA em 1930. E se hoje viajar para uma competição internacional de selecções terá como maior complicação o controlo aeroportuário para entrar no avião, na altura não era bem assim. Deslocações intercontinentais implicavam tempo e muito dinheiro para um desporto que não tinha a dimensão de hoje. Nem os recursos. Pelo que teve que ser um rei recentemente coroado e a nacionalidade de dois presidentes a ajudar a compor o ramalhete de 13 equipas (já vai perceber o porquê do invulgar número ímpar). 
Tudo começou pela polémica na atribuição do torneio. O Uruguai era a potência sem contestação da época, enquanto as nações britânicas (berço do futebol moderno) já davam asas a um Brexit rudimentar ao saírem da FIFA para se colocarem à parte, num campeonato entre elas. Medalha de ouro na competição de futebol dos Jogos Olímpicos de 1924 e 1928, a nação sul americana aproveitou os festejos do centenário da primeira constituição do país para se candidatar à organização. Juntaram-se a Itália, Suécia, Holanda, Espanha e Hungria que, por uma razão e por outra, foram desistindo ao longo do processo.
Sem apuramento, a competição fez-se exclusivamente por convite aos países que então faziam parte da FIFA. Quem quisesse, podia entrar. Nas Américas, o interesse foi elevado, com sete equipas da América Latina (além do Uruguai) e os EUA a declararem o seu interesse. Já do lado europeu, que compunha a parte de leão das federações, ainda ninguém se tinha chegado à frente quando faltavam só dois meses para a competição.
Eis que chegou a hora do bom velho entusiasmo político que conseguiu apelar a quatro equipas do velho continente. Pelo seu lado, o presidente francês da FIFA, Jules Rimet (que deu o nome ao troféu de campeão do mundo), não descansou enquanto não garantiu a presença de uma selecção francesa. Que ainda assim viajou sem a principal estrela e o seleccionador habitual (Manuel Anatol e Gaston Barreau respectivamente), sem tempo nem paciência para o que esperava, segundo reza a lenda. O mesmo se passou com a Bélgica, sob pressão do então vice-presidente belga-alemão da associação, Rodolphe Seeldrayers.
Quarteto de cordas para relaxar
Com espaço histórico para mais duas equipas, chegou a hora do rei Carol II da Roménia. Coroado há pouco tempo, faz da ida de uma selecção romena uma cause celebre nacional que levou muito a peito. Escolheu o treinador e seleccionou os jogadores 1 a 1, além de ter convencido os empregadores a deixá-los ausentarem-se (com salário) por um período de tempo indeterminado. Foi também instrumental em convencer o rei Alexandre I a fazer a Jugoslávia a juntar-se à festa à última da hora, não sem problemas também, mas aqui de outro género. Os croatas recusaram-se a entrar numa equipa conjunta, o que, para não ferir sensibilidades, obrigou a federação a optar por levar só jogadores sérvios.
Alinhamento definido e tudo pronto para receber. Só faltava definir a pequeníssima questão das viagens e dos custos de transporte das equipas. Após muita discussão, conversas, avanços e recuos, decidiu-se que a união fazia a força e optou-se por uma solução que se escreve em duas palavras: Conte Verde. Construído em 1922, nos estaleiros da firma William Beardmore & Cº em Glasgow, era um paquete de luxo que levava a alcunha porque era conhecido o popular Amadeu VI, Conde de Sabóia. Pesava 18.761 mil toneladas e esteva rotinado para a exigente viagem transatlântica que se pretendia, além de ter espaço para todos. Ou quase, melhor dizendo, porque a entrada tardia da Jugoslávia fez com que já não houvesse lugar para eles. Nada que mais uma pressão não resolvesse e arranjasse lugares noutro navio.
Mas voltemos ao Conte Verde. A viagem mais famosa do navio começou em Génova, onde embarcou a selecção da Roménia. Seguiu-se uma paragem em Villefrance-sur-Mer, onde apanhou a selecção francesa, três árbitros (para juntar aos 11 uruguaios que compuseram a equipa do apito) e o próprio Jules Rimet, que levou o troféu literalmente na mala. Os belgas entraram em Barcelona e a viagem prosseguiu rumo ao encontro com a história.
Foram 15 dias muito felizes”, contou Lucien Laurent, o francês que se tornaria no primeiro jogador a marcar um golo no Mundial. “Fazíamos o aquecimento no porão e o treino no convés. Depois relaxávamos na piscina e à noite com comédia ou um quarteto de cordas. Foi como um campo de férias. O treinador nunca nos falou de tácticas”, recordou com a ressalva que eram “jogadores jovens a divertirem-se.” Só mais tarde se aperceberam do “lugar na história” que tinham garantido. 
Transporte de tropas
Pelo caminho, ainda apanharam o Brasil no Rio de Janeiro antes de atracarem em Montevideo, capital uruguaia onde se realizaram todos os jogos da competição. Caminho de convívio que não levou nenhuma destas equipas à fase a eliminar, que curiosamente contou com os afastados da Jugoslávia. O campeão, esse seria o anfitrião Uruguai a confirmar a hegemonia da época após todos os percalços para que o Mundial fosse efectivamente mundial.
Quem voltou a ter papel na história foi também o Conte Verde. Entre 1938 e 1940 levou perto de 17 mil refugiados judeus para a China, onde o advento da II Guerra Mundial acabou por o deixar ancorado na posse dos japoneses. Dois anos depois, já com o nome de Teikyo Maru, foi utilizado para uma troca de diplomatas no então porto neutral de Lourenço Marques (agora Maputo) e acabaria por ser reconvertido para o transporte de tropas japonesas. Afundado e reconstruído duas vezes, acabaria por ser desfeito em 1949.
São duas palavras e um navio que ficam para a história “de uma nova aventura” que deu pelo nome de Campeonato do Mundo de Futebol. Até aos dias de hoje."

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