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terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Carta aberta

"A quem passaste carta-branca para a tua automutilação? A troco de quê?

«Caro futebol português, confesso que era apaixonado por ti. Nasci há quase 45 anos e comecei a dar pontapés na bola desde que me lembro de ser gente. A minha mãe diz-me que a loucura era tanta que não ligava a mais nada. O que eu queria mesmo era jogar. Não importava se a bola era verdadeira ou improvisada. Desde que rolasse, perfeito.
A doidice era tanta que, lá em casa, não havia vaso que resistisse. É certo que a ousadia saía-me cara, mas o preço a pagar era mínimo face à loucura que sentia ao fazer aquilo que mais gostava. Cada minuto livre era passado nas jogatanas. Se estivesse sozinho, verbalizava relatos, personificada glórias do meu tempo e reproduzia o som dos adeptos quando gritavam golo.
Nessa altura, as emoções das partidas era saboreadas nas vozes dos relatos de domingo à tarde. Não havia transmissão televisiva, nem repetições nem mais repetições. Era tudo sentido ali, naqueles instantes.
De cada vez que se gritava 'Golo!' tentava adivinhar quem marcou, onde, em que jogo. Seguia a voz do relator de serviço como se ela me transportasse para dentro do relvado. E transportava! Eram dez, quinze segundos da mais deliciosa magia que uma criança podia retirar.
A minha infância, tal como a de muitos meninos, foi marcada por esses momentos bonitos e agradeço-te por isso.
Sabes porque te falo agora disto? Porque sinto saudades dessa inocência. Da forma pura como olhava para ti.
Hoje continuas a ser especial mas já não é a mesma coisa.
No jogo jogado, és único: há golos memoráveis, fintas estonteantes e adrenalina incomparável. Verdade.
Mas o problema é o resto. Tudo o resto.
Vejo que perdeste a inocência. E que há muita coisa errada à tua volta.
O futebol que eu conheci jamais permitira tantos interesses obscuros. Jamais permitiria tantos comportamentos desviantes, tanta falta de ética, de respeito e de educação.
O futebol que eu conheci apoiava os verdadeiros adeptos. Não alimentava grupos de delinquentes, não os incentivava à violência nem a incrementar o ódio, sobretudo nos mais jovens.
O futebol que eu conheci tinha em cada jogador um actor de verdade e em todos os outros meros figurantes de circunstância. Não o contrário. Nunca o contrário.
O futebol que eu conheci não via multiplicarem-se ameaças e agressões a sério por causa de um meio penálti ou de um quase vermelho.
O futebol que eu conheci não proliferava nas redes sociais, onde qualquer idiota sem expressão é candidato a prémio Nobel de opinião.
O futebol que eu conheci não apoiava a imoralidade. Não fomentava a poluição sonora. Não era cúmplice de atentados à honra, de atropelos aos direitos das pessoas, de crimes atrás de crimes.
Na verdade, quase não te reconheço. Como é que mudaste tanto? Como se permitiste chegar a este ponto?
Que referências andas tu a dar aos meninos de hoje que serão os jogadores, treinadores e adeptos de amanhã?
A quem passaste carta branca para a tua automutilação? A troco de quê?
Para servir quem?
Pensa nisso. Não está apenas a matar o melhor do meu imaginário. Estás a destruir o daqueles que insistem em acreditar que ainda és um lugar bonito."

Duarte Gomes, in A Bola

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