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sábado, 15 de abril de 2017

Irradiação ou diversão?

"Para deixar tudo na mesma e alimentar a impunidade, o habitual é tratar de problemas ao lado do que eles são. Dá circo e espectáculo, enquanto há atenção pública; mas, apagadas as luzes das câmaras e desligados os microfones, vê-se tudo na mesma.
É problema geral, não só do desporto. A política roda muito à volta desta moda: o nome é “política-espectáculo”. Às vezes, é técnica para ludibriar o público: fingir que se faz… sem fazer. Outras vezes, é somente um mau hábito instalado.
Um modo típico é exibir confiança no poder salvífico das leis: muda-se a lei… e já está tudo bem. Surge problema grave? Soam e ressoam vozes para apertar leis e agravar penalidades. Não se cuida do essencial: aplicar bem a lei que existe e verificar bem o que possa ter falhado.
Uma lei só merece ser revista, em reacção a qualquer facto, se foi bem aplicada – e, aplicada, não chegou. É tolice ocorrer uma falta, punível com pena de 4 anos, e começar um berreiro para passar a pena perpétua – é o enfezado raquítico a aparentar viril musculatura. Tempos passados, olha-se o caso de novo e o infractor foi punido com 1 ano, ou menos, beneficiando ainda de suspensões de pena ou outras benesses do “sistema”.
O caso recente de Marco Gonçalves, o “Orelhas”, do Canelas 2010, é fresco exemplo desse tique, espectacular e inconsequente. O caso é gravíssimo, mas as autoridades, fingindo alarme e preocupação, passaram ao lado. O clamor do agravamento das penas foi o habitual biombo de circunstância, cortina de fumo para enganar.
Desde dirigentes associativos e federativos até a comentadores encartados e ao secretário de Estado, muitas vozes reclamaram a reintrodução no Direito Desportivo da pena de irradiação: o que todos vimos, uma violentíssima agressão ao árbitro, mereceria irradiação — e logo se montou coro e procissão nesse sentido. A comunicação social recordou mais violências recentes e ecoou — e bem — a preocupação dos árbitros. Outro caso, particularmente chocante, foi um pai (será “encarregado de educação”?) de um jovem atacar à paulada o árbitro no seu carro. O embrulho subiu até uma cimeira do secretário de Estado com associações, Federação e árbitros, que terá adoptado várias medidas – a imprensa destacou reforçar o policiamento.
Muito bem. Mas o que tem uma coisa a ver com a outra? Se houvesse polícia no campo do Rio Tinto (e havia) o Marco não teria dado a joelhada no árbitro, partindo-lhe o nariz em três sítios? Se houvesse mais polícia no desporto juvenil, aquele pai violento não teria dado a paulada? Se houvesse pena de irradiação, o “Orelhas” teria os joelhos sossegados e as emoções e fúrias controladas?
A irradiação é, aqui, discussão inútil. A razão por que foi eliminada do desporto é ter-se considerado que é inconstitucional, uma vez que a Constituição proíbe penas perpétuas. Diz o artigo 30.º, n.º 1: «Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.»
Esta norma é ditada para o direito penal e visa directamente proibir a prisão perpétua. Mas, como o paradigma do direito sancionatório é o direito penal, nomeadamente para o direito disciplinar, entendeu-se, na reforma da disciplina desportiva em geral, que a irradiação devia ser expressamente proibida, por ser pena perpétua e vitalícia. Isto é discutível; mas a discussão é inútil para responder a casos concretos. E constitui distracção perigosa: desfoca-nos do que podemos – e devemos – fazer; e foca-nos no que não podemos fazer, assim amnistiando os responsáveis pelo que não fizeram e não querem fazer.
A verdade é que, se fosse aplicada – e depressa – a Marco Gonçalves a pena disciplinar máxima de suspensão de 4 anos, seria provavelmente suficiente. E exemplar. Por outro lado, a constatar-se, ainda assim, a existência de riscos para o futuro e ter-se por baixo o limite máximo, pode-se aumentá-lo para 10 ou 15 anos, sem necessidade de reabrir a interminável discussão da irradiação e o inerente entretenimento jurídico-mediático.
O problema é outro – e foi outro. A questão é o que fizeram, ou não fizeram, as associações e a Federação a este respeito. E o que fez o governo, por cima, a fiscalizar e a velar pela boa ordem das coisas.
Do Canelas 2010 há, desde, pelo menos, Outubro, denúncias extensas e chocantes dos seus métodos violentos como nova ciência desportiva. Notícia também de doze clubes da sua série se recusarem a defrontá-lo por provada insegurança.
Notícia de esse mal-estar durar já há três anos, tendo vindo a crescer e a atingir este cume. E notícia também de, durante jornadas a fio, a indiferença das autoridades desportivas ter premiado a doutrina de violência do Canelas 2010 com numerosas vitórias por falta de comparência, facilitando-lhe a liderança do perturbado campeonato e, porventura, a ascensão ao escalão superior no final.
Se isto não é impunidade, não sei o que seja impunidade. Creio até que importa estudar e averiguar se não foi — e não é — cumplicidade. Foram líderes e doutrinadores deste Canelas 2010, também membros de conhecida claque clubista, os eleitos pela Federação Portuguesa de Futebol para organizar uma controversa claque da selecção nacional. Esta “claque” deu nas vistas a entrar no estádio do último jogo oficial da selecção, com escolta policial e a desferir insultos inaceitáveis. E a claque clubista de Marco Orelhas, destacou-se agora, num jogo de andebol, a cantar animadamente com a sonoridade de pavilhão, sob regência do amigo da FPF, este mimo: «Ai quem me dera que o avião da Chapecoense fosse do Benfica!»
O caso do Canelas e dos seus atletas (se assim lhes podemos chamar), o que exige é que a Associação de Futebol do Porto e a Federação Portuguesa de Futebol apliquem com todo o rigor e vigor as leis que existem e velem bem pela disciplina e pelo bom senso. O mesmo se diga de casos como o do pai trauliteiro — aqui, sim, afinem o direito desportivo, se for necessário. E, já agora, também o caso do andebol.
Expliquem-nos, tim-tim-por-tim-tim, tudo o que aconteceu e não aconteceu. E poupem as lágrimas de crocodilo. Actuem! E o governo que vigie e faça fazer. A lei fixa: «A actividade desportiva é desenvolvida em observância dos princípios da ética.» Quem o faz valer a sério?"

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